terça-feira, 5 de junho de 2012

Cesare Valletti: Don Giovanni, Salzburgo 1960


O reconhecimento e posterior instituição de uma determinada tipologia vocal, fundado em toda uma miríade de características detidas em comum por um dado conjunto de instrumentos, permite a identificação, por um lado, de concentrações de cariz assaz abrangente, pela extensa circunscrição de intérpretes que agregam tais como "soprano lírico-spinto". Inversamente, classificações como a de "tenor dramático", tendem a revestir-se de uma relativa singularidade discriminatória.

Em circunstâncias específicas, o estabelecimento de novos rótulos, com intuito classificativo, emana da particular concatenação de predicados num único cantor. Tal será o caso do soprano francês Cornélie Falcon (1814-1897), celebrizado pela admirável extensão e dotado de um impressivo registo grave aliado a um amplo volume, na origem do qual se encontra a designação "Falcon", passível de ser acoplada, em pleno século vinte, a intérpretes como Giulietta Simionato, Grace Bumbry, Shirley Verrett ou Waltraud Meier. Por seu turno, a expressão "barítono Martin", reportando-se ao barítono francês Jean-Blaise Martin (1768-1837), procura catalogar instrumentos caracterizados por um timbre de acentos, marcadamente, tenoris. Figuras como Jacques Janssen, Richard Stilwell ou Wolfgang Holzmair constituem-se válidos exemplos desta tipologia vocal.

Pese embora não alcançando o estatuto quasi excepcional atribuído às supracitadas tipologias, a designação "tenore di grazia" encerra, ainda actualmente, alguma especificidade. Tal como a própria expressão indicia, reportamo-nos, grosso modo, a um instrumento de timbre grácil e volumetria algo diminuta, dotado de manifesta agilidade, óptima projecção vocal e uma consequente exercitação da paleta dinâmica. A extensão vocal, ainda que tendencialmente propensa a planos, amiúde, estratosféricos, caracteriza-se, igualmente, por uma efectiva capacidade de negociação no registo mais grave. Em termos de reportório, o "tenore di grazia" identifica-se de modo mais congenial com o período belcantista, designadamente, à produção de alguns dos seus mais lídimos representantes: Gioacchino Rossini (Conde de Almaviva em Il Barbiere di Siviglia, Lindoro em L'Italiana in Algeri), Vincenzo Bellini (Elvino em La Sonnambula ou Arturo em I Puritani) e Gaetano Donizetti (Tonio em La Fille du Régiment, Nemorino em L'Elisir d'Amore). Da mesma forma, ainda que sob uma nomenclatura parcialmente diversa, determinados papéis gálicos como Nadir em Les Pêcheurs de Perles de Georges Bizet, Gérald na ópera Lakmé de Leo Delibes ou Chapelou em Le Postillon de Lonjumeau de Adolphe Adam requerem um cantor dotado de um instrumento símil.

Uma deambulação retrospectiva por entre o notabilíssimo conjunto de destacadas figuras da Lírica, activas no derradeiro século, releva, de modo mais imediato, nomes como Tomaz Alcaide, Tito Schipa, Juan Oncina, Léopold Simoneau, Luigi Alva ou Alfredo Kraus, inequivocamente, exaltados cultores da tipologia vocal em foco. Um outro intérprete digno de figurar entre a eminente estirpe estilístico-vocal ora elencada será, indubitavelmente, Cesare Valletti.

Nascido a 18 de Dezembro de 1922, o tenor romano estuda, entre outros, com um dos seus mais reverenciados predecessores estilísticos: Tito Schipa. Estreia-se profissionalmente em 1947, no Teatro Petruzzelli de Bari, como Alfredo Germont na ópera La Traviata de Giuseppe Verdi. Em Outubro de 1950, alcança alguma notoriedade no papel de Don Narciso da ópera Il Turco in Italia de Gioachino Rossini, integrando o reputado elenco de uma produção levada à cena no Teatro Eliseo de Roma: Maria Callas, Sesto Bruscantini, Mariano Stabile, Franco Calabrese, sob a égide de Gianandrea Gavazzeni. Breves meses após a precedente incursão rossiniana, é convidado a pisar o mais prestigiado palco operático italiano - o Teatro alla Scala. A 9 de Março de 1951, encarrega-se do simplório Nemorino em L'Elisir d'Amore de Gaetano Donizetti junto a Alda Noni, Piero Guelfi e Silvio Maionica (substituindo Tancredi Pasero), com direcção orquestral a cargo de Argeo Quadri. Em Junho, reencontra Maria Callas, desta feita, na Cidade do México, para uma série de récitas de La Traviata, cuja distribuição contemplava ainda Giuseppe Taddei em Giorgio Germont e Oliviero De Fabritiis no pódio, alvo de frequentes reedições discográficas.

Novos compromissos sucedem-se: apresenta-se no Teatro Nacional de São Carlos, precisamente, um ano após a estreia em Milão, no papel do Conde de Almaviva da ópera Il Barbiere di Siviglia de Rossini com Tito Gobbi, Dolores Wilson, Fernando Corena, Giulio Neri e o maestro Antonino Votto. A 19 de Setembro de 1953, dá-se a conhecer ao público norte-americano, designadamente, na Ópera de São Francisco, por intermédio da assunção do papel de Werther na ópera homónima de Jules Massenet, contracenando com Giulietta Simionato, Dorothy Warenskjold, John Lombardi e Lorenzo Alvary, numa edição em língua original assegurada por Tullio Serafin. O êxito logrado franqueia-lhe, quase instantaneamente, as portas do MET de Nova Iorque, teatro no qual debuta a 10 de Dezembro desse mesmo ano, naquela que se viria a constituir uma das suas mais indeléveis criações: Don Ottavio em Don Giovanni de Wolfgang Amadeus Mozart, ladeado por Nicola Rossi-Lemeni, Margareth Harshaw, Eleanor Steber, Erich Kunz, Roberta Peters, Lorenzo Alvary, Luben Vichey e com Max Rudolf no elmo.

No decorrer de anos subsequentes, Cesare Valletti transformar-se-ia num dos intérpretes preferenciais de entre o elenco artístico do teatro nova-iorquino, no que ao reportório lírico concerne. Em Fevereiro de 1954, assume a personagem do Conde de Almaviva em Il Barbiere di Siviglia de Rossini numa nova produção da autoria de Cyril Ritchard, contracenando com Robert Merrill, Roberta Peters, Fernando Corena e Cesare Siepi, sob a direcção de Alberto Erede. No mês de Novembro, toma parte numa edição absolutamente histórica da ópera Manon de Massenet com Victoria de los Angeles, Fernando Corena e Lorenzo Alvary, consubstanciada pela leitura idiomática de Pierre Monteux. Cerca de um ano depois, afronta, no idioma do Bardo, o papel de Ferrando em Così Fan Tutte de Mozart, numa distribuição que contemplava Eleanor Steber, Blanche Thebom, Frank Guarrera, Patrice Munsel e John Brownlee, sob a batuta de Fritz Stiedry. Nos estertores de 1955, toma, uma vez mais, parte de uma novel encenação no MET: Don Pasquale de Gaetano Donizetti, numa concepção de Dino Yannopoulos, com um juvenilíssimo Thomas Schippers a dirigir Fernando Corena, Roberta Peters e Frank Guarrera. No mês de Outubro de 1957, uma inédita produção da ópera Don Giovanni a cargo de Herbert Graf volta a ostentar o exemplar Don Ottavio de Valletti, nesta ocasião particular, em meio a uma superlativa constelação artística encimada por nomes como Cesare Siepi, Eleanor Steber, Lisa Della Casa, Fernando Corena, Roberta Peters, Theodor Uppman e Giorgio Tozzi, naquela que viria a figurar enquanto estreia do venerável maestro austríaco Karl Böhm no MET. A experiência cumulada na execução em língua inglesa, habilita-o, em Dezembro de 1958, à abordagem de Alfred em Die Fledermaus de Johann Strauss Filho, circundado por Hilde Gueden, Theodor Uppman, Roberta Peters, Blanche Thebom e Frank Guarrera, com direcção musical a cargo de Erich Leinsdorf. O dealbar de 1959 é marcado pela estreia nova-iorquina no papel de Alfredo Germont em La Traviata de Giuseppe Verdi, com o maestro Kurt Adler a dirigir Licia Albanese e Mario Sereni. O aclamado percurso de Cesare Valletti no MET sofreria um súbito revés no mês de Novembro de 1960. No decorrer do período de ensaios de uma nova produção de L'Elisir D'Amore protagonizada por Elisabeth Soderstrom, Frank Guarrera e Fernando Corena, sob a égide de Fausto Cleva, o cantor é liminarmente dispensado pela direcção artística, encabeçada pelo mítico Rudolf Bing, sendo substituído por Dino Formichini. Reiteradamente instado a regressar em posteriores temporadas, o tenor não mais retornaria.

Entretanto, em Outubro de 1958, Valletti já se havia estreado em Covent Garden, naquelas que viriam a ser as suas únicas apresentações no histórico teatro londrino, numa sequência de récitas de La Traviata com Maria Callas, Mario Zanasi e o maestro Nicola Rescigno. O cantor retomava, desta forma, uma intermitente, conquanto, frutífera parceria com La Divina, após uma célebre encenação de Luchino Visconti da ópera La Sonnambula de Vincenzo Bellini, programada pelo Teatro alla Scala em Maio de 1955, igualmente notabilizada pela direcção musical, inusitadamente, entregue a Leonard Bernstein. Em 1960, a época estival reservar-lhe-ia uma intensa participação na edição anual do Festival de Salzburgo. Apresenta-se a 6 de Agosto em recital, acompanhado pelo pianista Leo Taubmann, participando, alguns dias mais tarde, num concerto dirigido por Bernard Paumgarten, na execução de duas árias de concerto para tenor de Mozart.

No decénio de 60, após desligar-se do MET, o tenor fixa residência em Itália, desenvolvendo, simultaneamente, uma estreita colaboração com o Maio Musical Florentino, entidade com a qual se apresenta, regulamente, em diversas produções operáticas. Não obstante, entre Outubro e Novembro de 1963, volta surgir no continente norte-americano, especificamente, na Ópera de São Francisco, nos papéis de Flamand na ópera Capriccio de Richard Strauss (com Elisabeth Schwarzkopf, Thomas Stewart, Hermann Prey, Sona Cervena e Leonardo Wolovsky, sob a direcção de Georges Prêtre), Ferrando em Così Fan Tutte (o maestro húngaro Janos Ferencsik dirigia Elisabeth Schwarzkopf, Helen Vanni, Hermann Prey, Reri Grist e Leonardo Wolovsky) e Conde de Almaviva em Il Barbiere di Siviglia (dividindo o palco com Hermann Prey, Reri Grist, Elfego Esparza e Peter van der Bilt). Afastando-se, progressivamente, do circuito lírico, Cesare Valletti decide enveredar por um carreira enquanto recitalista. Pese embora, oficialmente, retirado, desde 1967, não repele o ensejo de volver uma última vez aos palcos, despedindo-se, em definitivo, no Festival de Caramoor, em Nova Iorque, assumindo o imperador romano Nero em L'Incoronazione di Poppea de Claudio Monteverdi. O cantor viria a falecer na cidade de Génova a 13 de Maio de 2000.

Tal como aflorado em linhas anteriores, a personificação de Don Ottavio em Don Giovanni de Mozart será, porventura, aquela em que terá impresso um cunho mais referencial, passível de ser auspiciosamente confrontado com uma distinta plêiade de intérpretes contemporâneos, nomeadamente, Anton Dermota, Léopold Simoneau, Luigi Alva, Fritz Wunderlich ou Nicolai Gedda. Aquando da sua estreia no MET, neste específico papel, Ronald Eyer, na publicação Musical America, teceu as seguintes considerações: 

"The musical news was made by a newcomer, Cesare Valletti, who made his debut in the dramatically negative, but musically very important, role of Don Ottavio. Mr. Valletti has brought to the Metropolitan roster one of the most beautifully schooled voices it has been my privilege to hear in a long time. It is a clean, clear lyric tenor-not of remarkable size or power as compared to our usual conception of an Italian operatic tenor, but expertly and effortlessly produced, perfectly placed and completely musical in a fluid, relaxed manner. In shaping a phrase, in taking and supporting a lovely tone and in negotiating delicate fioriture-as in the second-act aria "Il mio tesoro intanto," with its affinity for the high F-Mr. Valletti revealed genuine mastery over the vocal organ."

Para além das supracitadas intervenções, a edição do Festival de Salzburgo, ocorrida em Agosto de 1960, contemplava, entre outras, uma produção da ópera Don Giovanni de contornos autenticamente deíficos, ante o Olímpo dramático-vocal que a distribuição corporizava. Um plano de alcance aparentemente remoto no qual residia Cesare Valletti. Dotado de um timbre de perenal luzimento, fundado numa admirável homogeneidade vocal, o tenor exibe um legato inquebrantável pontuado por um soberbo controle dinâmico que o habilita ao cultivo de um fraseado beirando o diáfano no grau de elegância que encerra, contribuindo, sobremaneira, para uma execução absolutamente modelar, num papel de elevada exigência técnica. O Memória da Ópera propõe, neste sentido, a audição das árias Dalla sua pace, presente no acto introdutório, e Il mio tesoro intanto, constante do segundo acto, manifestamente elucidativas da admirável prestação do tenor.

Com direcção orquestral a cargo de Herbert von Karajan, compunham o elenco: Eberhard Waechter (Don Giovanni), Leontyne Price (Donna Anna), Cesare Valletti (Don Ottavio), Elisabeth Schwarzkopf (Donna Elvira), Walter Berry (Leporello), Graziella Sciutti (Zerlina), Rolando Panerai (Masetto), Nicola Zaccaria (O Comendador).

 
Dalla sua pace






 

Il mio tesoro intanto






terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Ghena Dimitrova: La Forza del Destino, Estrasburgo 1972


A carreira de um cantor lírico pode processar-se de modo diverso. Intérpretes há cuja estreia em papeis de destaque os guinda, quase instantaneamente, à mais fúlgida constelação operática. Inversamente, existem aqueles que após um discreto dealbar, vão solidificando a sua posição, por vezes, aguardando aquela oportunidade que transmute irreversivelmente o seu percurso, tal como sucedeu a Montserrat Caballé a 20 de Abril de 1965, ao substituir Marilyn Horne no papel-titular da ópera Lucrezia Borgia de Donizetti, no Carnegie Hall, em Nova Iorque, facto que a alcandorou inequivocamente ao primeiro plano da Lírica mundial. Encontramos, ainda, profissionais cuja óptima impressão inicial, consubstanciada quer por participações vitoriosas em prestigiados concursos de canto, quer por exibições de elevado nível, ainda que reconhecidas, não logrou surtir o efeito mobilizador espectável, deixando uma impressão algo contraproducente. Tal terá sido o caso do soprano búlgaro Ghena Dimitrova.

Nascida a 6 de Maio de 1941, ingressou no Conservatório de Sófia onde teve oportunidade de estudar Canto com o barítono Christo Brambarov. A 27 de Dezembro de 1967, na Ópera de Sófia, a incapacidade quase concomitante de dois sopranos em afrontar o mortífero papel de Abigaille na ópera Nabucco de Giuseppe Verdi confere-lhe a oportunidade de se estrear profissionalmente num papel de destaque. Sem qualquer tipo de preparação, Dimitrova ultrapassa, galhardamente, o desafio ao qual se havia proposto. Nos três anos subsequentes, torna-se presença assídua no principal palco lírico do seu país-natal assumindo, para lá da princesa babilónia (personagem que se viria a revelar absolutamente emblemática na carreira da cantora), papeis tão díspares como Emma na ópera Khovanshchina de Modest Mussorgsky e Leonora em Il Trovatore de Giuseppe Verdi. Em Maio de 1970, a vitória alcançada na quarta edição do Concurso Internacional para Jovens Cantores Líricos, levado a cabo na Ópera de Sófia, confere-lhe a atribuição de uma bolsa de aperfeiçoamento vocal em Itália. No país transalpino, Dimitrova ingressa na Academia do Teatro Alla Scalla, instituição na qual estuda com Renato Pastorino, Enza Ferrari, Margherita Carosio e Gina Cigna.

Em Junho de 1972, a assunção do papel de Amelia na ópera Un Ballo in Maschera de Verdi alça-a ao pódio do prestigiado Concurso Internacional "Toti Dal Monte" de Treviso. No final desse mesmo ano, exibe-se, no respectivo Teatro Comunale, junto dos demais vencedores do certame (o tenor Ottavio Garaventa, os barítonos Giuliano Bernardi e Antonio Salvadori e o meio-soprano Christina Anghelakova) na obra que a havia consagrado meses antes. O sucesso obtido abre-lhe, de modo imediato, as portas do Teatro Régio de Parma onde Dimitrova tem a oportunidade de enfrentar, porventura, a mais temível das "tribos" operáticas italianas. Ladeada pelo jovem Jose Carreras, Piero Cappuccilli e Mirna Pecile, sob a direcção de Giuseppe Patanè, o soprano é ovacionado, sem reservas, pelo exigente público parmesão. Pese embora o percurso, aparentemente, ascendente trilhado pela intérprete, os triunfos aqui relatados não terão encontrado eco junto dos teatros líricos de maior nomeada. De facto, logo após a frutuosa participação no concurso ocorrido em Treviso, Dimitrova estreia-se, com Jean Brazzi e Pali Marinov, na Tosca de Giacomo Puccini no Grand Theatre de Tours (França). Logo de seguida, encontra-se em Bordéus num novo papel - a Aida de Giuseppe Verdi - ladeada por Peter Gougaloff e Irina Arkhipova. Em Março de 1974, interpreta novamente a princesa etíope, desta feita, em Las Palmas, integrando um elenco composto por Carlo Bergonzi, Christina Anghelakova, Giampiero Mastromei, Paolo Washington e Giovanni Foiani, dirigidos por Michelangelo Veltri. Em Abril, regressa a um palco italiano, alternando a sua Abigaille com Elena Suliotis no Teatro Massimo de Palermo. Cornell MacNeil e Boris Christoff eram os destacados intérpretes masculinos.

Em Setembro desse mesmo ano, dá-se a conhecer ao público sul-americano num exigente recital no paradigmático Teatro Colón de Buenos Aires. Regressa a Itália, designadamente, a Treviso para a Minnie da ópera La Fanciulla del West de Giacomo Puccini, ombreando com Renato Francesconi e Giangiacomo Guelfi (Novembro de 1974). Em Junho de 1975, o soprano búlgaro desloca-se a Saragoça para um Andrea Chenier de Umberto Giordano com Placido Domingo e Vicente Sardinero. A época estival que ora principiava seria, contudo, pontuada por uma expansão de latitudes sul-americanas. Em Caracas reencontra Domingo e Cappuccilli em dois títulos da produção verdiana: Ernani (ainda com Jerome Hines em Don Ruy) e Un Ballo in Maschera (Barbara Conrad assumia Ulrica). Em Outubro, tem lugar uma incursão inicial na cena lírica brasileira: o Teatro Municipal de São Paulo acolhe a sua Aida, juntamente com Francisco Lazaro, Maria Luisa Nave, Garbis Boyagian, Mario Rinaudo e Carlo Del Bosco, sob a égide de Giuseppe Morelli. Cerca de um mês depois, a estreia nas temporadas do Gran Teatre del Liceu, em Barcelona, faz-se por intermédio da Amelia de Un Ballo in Maschera com Giorgio Casellato-Lamberti, Renato Bruson e Adriana Stamenova. Escassas semanas mais tarde, leva a sua Maddalena de Coigny da ópera Andrea Chenier à Cidade do México. Tornando ao Velho Continente, afronta, pela primeira vez, uma das personagens que a celebrizaria: a gélida princesa Turandot, na ópera homónima de Puccini. O Teatro Comunale de Treviso abrigava um novel triunfo de Ghena Dimitrova, rodeada por Piero Visconti, Rita Talarico e Giancarlo Luccardi. Os primeiros meses de 1976 transcorrem em França: no mês de Fevereiro encarrega-se da Leonora de Il Trovatore em Avignon com Peter Gougaloff, Stoyan Popov e Michele Vilma; em Março, uma outra Leonora - a da ópera La Forza del Destino - aguardava-a em Angers junto a Renato Francesconi e Lorenzo Saccomani. Finalmente, Abril vê-a no papel de Floria Tosca, desta feita, em Rouen, dividindo o palco com o Cavaradossi de Giorgio Merighi. A cidade de Caracas acolhia-a em Maio para uma produção de La Fanciulla del West (Nicola Martinucci interpretava Dick Johnson e Louis Quilico o xerife Jack Rance) e uma outra de Tosca (com Ruben Dominguez e, novamente, Quilico). O público gaulês testemunhou o regresso de Dimitrova, designadamente, a Marselha, em Outubro de 1976, com um Ernani no qual avultavam Nunzio Todisco, Franco Bordoni e Georg Pappas, com direcção orquestral a cargo de Carlo Felice Cillario. Em Barcelona, encarrega-se do papel-titular na ópera Manon Lescaut de Puccini, ladeada por Francisco Lazaro e Attilio D'Orazi. O soprano concluía o ano volvendo a determinadas "origens" com a Amelia de Un Ballo in Maschera, em Treviso, desta feita, integrando um elenco formado por Vincenzo Bello, Antonio Salvadori, Nicoletta Ciliento e Alida Ferrarini, dirigidos por Carlo Franci.

No mês de Abril de 1977, Ghena Dimitrova desloca-se a Valência para uma Tosca com Placido Domingo, Attilio D'Orazi e o maestro Alberto Zedda. De retorno ao continente americano, aguardava-a um duplo compromisso na capital venezuelana: Santuzza na ópera Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni, contracenando com Nicola Martinucci e Richard Fredricks e a protagonista em Manon Lescaut de Puccini. Algumas semanas mais tarde, em Buenos Aires, encarna Turandot no prestigiado Teatro Colón, novamente com Nicola Martinucci. Em Novembro, depara-mo-nos com o soprano búlgaro em Nice, local onde interpreta, pela primeira vez, um dos mais representativos papeis do seu reportório: Gioconda na ópera homónima de Amilcare Ponchielli, liderando um elenco formado por Ottavio Garaventa, Franco Bordoni, Michele Vilma e Agostino Ferrin, sob direcção de António de Almeida. O ano de 1978 inicia-se, igualmente, em solo gálico, designadamente, em Avignon, com um Don Carlo onde avultam Gianfranco Cecchele, Bonaldo Giaiotti, Bianca Berini, Stoyan Popov e Gérard Serkoyan. Entre os meses de Março e Maio, oscilando entre os continentes europeu e sul-americano, desloca-se à Cidade do México para uma produção da ópera Nabucco encimada por intérpretes búlgaros e regressa a França para um Macbeth em Marselha com Matteo Manuguerra, Pierre Thau e Beniamino Prior. Após incursão inaugural pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro com Turandot, ladeada por Ruben Dominguez e Maria Lúcia Godoy, apresenta-se em Espanha, retornando, respectivamente, a Valência (Manon Lescaut com Renato Francesconi e Antonio Blancas) e Las Palmas (Nabucco, circundada por Juan Pons, Paul Plishka e Luis Lima). O Verão desse ano seria marcado por uma produção da ópera Don Carlo no Teatro Colón. A distribuição abarcava nomes como Nicola Martinucci, Matteo Manuguerra, Nicolai Ghiuselev, Irina Bogachova e William Wildermann, sob a égide de Francesco Molinari-Pradelli.

Em determinado momento, a exigente rotina exercitada por Ghena Dimitrova ao longo desta fase inicial principiou a suscitar uma vaga de interesse no meio musical germânico. De facto, novas perspectivas abriam-se em Novembro de 1978 com a estreia do soprano em Hamburgo com a Leonora de Il Trovatore integrada num elenco formado por Juan Lloveras, Vicente Sardinero e Ruza Baldani, com direcção a cargo de Nello Santi. Após apresentações em Bari na ópera Un Ballo in Maschera com Ottavio Garaventa, Piero Cappuccilli e Lella Stamos, no mês de Janeiro, Tosca em Rouen junto a Nicola Martinucci e Kari Nurmela (Fevereiro) e um Ernani em Las Palmas protagonizado por Francisco Lazaro, Wassilli Janulako e Nicolai Ghiuselev (Março de 1979), Dimitrova é convidada a estrear-se na Ópera do Estado da Baviera, em Munique. A 13 de Maio exibe-se enquanto Elisabetta di Valois na ópera Don Carlo de Giuseppe Verdi. Novamente com Nello Santi no elmo, o elenco contemplava ainda Carlo Cossutta, Renato Bruson e Lorenzo Gaetani. O sucesso alcançado habilita-a, cerca de um mês depois, a um regresso a este mesmo palco, desta feita, na ópera Tosca com os demais vértices do trio protagonista assegurados por Benito Maresca e Leif Roar. O Estio é dividido entre o Rio de Janeiro (Il Trovatore com Ruben Dominguez, Benito di Bella e Bianca Berini) e Ravenna (partilhando o palco com Renato Bruson e Bonaldo Giaiotti na ópera Nabucco). Seria precisamente com este mesmo título que o soprano búlgaro encerraria o ano, em Avignon, com Kostas Paskalis, Salvatore Fisichella e, uma vez mais, Giaiotti.

Em Janeiro de 1980, Dimitrova encontra-se novamente em Munique. O seu estatuto principia a consolidar-se por intermédio de récitas das óperas Don Carlo (com Simon Estes, Wolfgang Brendel e Livia Budai) e Un Ballo in Maschera (Jose Carreras interpretava o monarca sueco). No mês seguinte, estabelece-se em França, reduto reiteradamente frequentado, com a ópera Tosca: primeiramente, em Orleans junto a Jose Todaro e Lajos Miller e, poucos dias mais tarde, em Rouen com Ottavio Garaventa em Cavaradossi. Volve a terras germânicas, em Abril, para um Nabucco na Deutsche Oper am Rhein (Dusseldorf) com Anthony Baldwin, Peter Meven e William Holley, sob a direcção de Alberto Erede. No mês de Maio, em Munique, interpreta a Leonora de La Forza del Destino ombreando com Veriano Luchetti e Wolfgang Brendel; em Junho, após um Don Carlo em Marselha com Giacomo Aragall, Giorgio Zancanaro, Bonaldo Giaiotti e Sandra Browne, retorna a Hamburgo com a Abigaille da ópera Nabucco e à capital bávara em apresentações adicionais de La Forza del Destino.

O percurso firme e paulatino trilhado por Dimitrova deparar-se-ia com um momento charneira a 10 de Julho de 1980 num dos mais tradicionais e emblemáticos palcos mundiais: a Arena de Verona. A ópera era La Gioconda, o elenco reunia colossos da magnitude de Luciano Pavarotti e Piero Cappuccilli, em torno dos quais gravitavam nomes de sólida estatura como Maria Luisa Nave, Bonaldo Giaiotti e Patricia Payne. O maestro Anton Guadagno ocupava o pódio. Emergindo gloriosamente de um elenco em supremo estado de graça, o soprano estabelecia-se definitivamente entre os mais notáveis intérpretes do firmamento lírico, inequivocamente aclamada por um delirante público rendido a um instrumento de proporções, aparentemente, inexauríveis na massiva capacidade impactante e admirável arsenal técnico. Convertando-se, quase instantaneamente, numa dilecta do público veronês, o nome de Ghena Dimitrova não tardaria a encabeçar sucessivas temporadas em alguns dos mais prestigiados teatros líricos mundiais, designadamente, a Ópera de Viena (Setembro de 1983, após um circunscrito conjunto de discretas aparições entre 1978 e 1979), o Teatro Alla Scala (Dezembro de 1983), o londrino Covent Garden (Julho de 1985) ou, nos estertores da década, o Metropolitan de Nova Iorque (Dezembro de 1987), obrigatoriamente, em papeis de elevada exigência técnico-dramática. O soprano búlgaro viria a falecer na cidade italiana de Milão a 11 de Junho de 2005.

No período imediatamente anterior à vitória obtida no concurso de Treviso, Ghena Dimitrova havia iniciado um périplo pelos mais diversos palcos líricos franceses interpretando a desditosa Leonora di Vargas da ópera La Forza del Destino de Giuseppe Verdi, empresa que haveria de estender-se por cerca de um ano. Será precisamente numa destas récitas em particular que o Memória de Ópera deter-se-á, por intermédio de uma preservação efectuada ao vivo na Ópera Nacional do Reno, em Estrasburgo, a 7 de Maio de 1972. A intérprete em destaque patenteia já uma voz perfeitamente modelada, caracterizada por um acentuado contraste tímbrico entre graves corpóreos e uma região aguda de um poderio fulgurante. Não obstante a assimetria observada, o soprano sucede na manutenção de uma homogeneidade de emissão e um notável domínio do espectro dinâmico a que acresce um insuspeito lirismo na abordagem do fraseado, aspecto que, numa fase posterior, acabaria por claudicar ante o metal vocálico que se apoderaria inapelavelmente do portentoso instrumento.

Em escuta, a ária do acto inicial (Me pellegrina ed orfana), o dueto do segundo acto entre Leonora e o Padre Guardiano (Or siam soli...Più tranquilla, l'alma sento...Se voi scacciate questa pentita...Sull'alba il piede all'eremo) e a célebre ária do derradeiro acto (Pace, pace, mio Dio!).

O maestro Alain Lombard dirigia Ghena Dimitrova (Leonora di Vargas), João Gibin (Don Alvaro), Lorenzo Saccomani (Don Carlo), Silvano Pagliuca (Padre Guardiano), Giuseppe Lamacchia (Fra Melitone), Mirna Pecile (Preziosilla).
  

Me pellegrina ed orfana






 

Or siam soli...






 

Pace, pace, mio Dio!






quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Carlos Gomes: Maria Tudor, Sofia 1998



Em termos operáticos, a segunda metade do século XIX italiano encontra-se, grosso modo, dominada pela produção de um compositor: Giuseppe Verdi. Figura de altíssimo relevo na cultura italiana, o génio do Mestre de Bussetto logrou eclipsar muitos dos seus contemporâneos, a maioria dos quais encontram-se completamente olvidados nos nossos dias. Exceptuando nomes como Amilcare Ponchielli, cuja principal ópera - La Gioconda - permanece no reportório dos principais teatros líricos, Filippo Marchetti - recordado, sobretudo, pelo seu Ruy Blas, baseado na obra homónima de Victor Hugo -, Alfredo Catalani, apologista da corrente wagneriana, e algumas figuras identificadas com o movimento artístico conhecido como Scapigliatura, designadamente, o compositor e libretista Arrigo Boito, um outro nome que, amiúde, é invocado em ligação com este período é o do compositor brasileiro Carlos Gomes.

Nascido a 11 de Julho de 1836 na cidade de Campinas, cedo começa a revelar uma particular apetência pelo estudo de partituras operáticas, nomeadamente da obra verdiana. O interesse manifestado pelo jovem Gomes face ao universo da Lírica produziria os primeiros frutos no dia 4 de Setembro de 1861, data em é apresentada, na cidade do Rio de Janeiro, a sua primeira ópera: A Noite do Castelo. Baseada na obra de um dos principais vultos do romantismo literário português - António Feliciano de Castilho -, a composição granjeia um enorme sucesso e admiração por parte do público, constituindo-se um inequívoco triunfo para o jovem compositor. Cerca de dois anos mais tarde, a 15 de Setembro de 1863, Carlos Gomes vivencia uma nova jornada de glória ao levar à cena o seu segundo título - Joana de Flandres -, novamente com texto em português, desta feita do escritor brasileiro Salvador de Mendonça. O reconhecimento definitivo da elite musical brasileira não se fez tardar. Nesse mesmo ano, parte para Itália onde estuda no Conservatório de Milão com o compositor Lauro Rossi. Em 1866, surge uma primeira obra cénica – a opereta Se sa minga, em dialecto milanês - a qual tem seguimento com nova incursão em moldes similares: Nella luna (1868).

Não obstante o relativo prestígio proporcionado por estas duas obras no meio musical da capital lombarda, faltava um impulso definitivo que o catapultasse para a primeira linha da Lírica italiana. A materialização dos anseios do jovem Gomes dar-se-ia por intermédio da obra de um dos mais destacados nomes da literatura brasileira: O Guarani de José de Alencar. Com libretto a cargo de Antonio Scalvini, estavam lançados os fundamentos para a composição daquela que, até hoje, se perfila como a ópera mais emblemática do compositor: Il Guarany. O enredo, propiciando uma ambiência marcadamente exótica, colocava em cena índios Guaranis e Aimorés, nobres portugueses e aventureiros espanhóis e possibilitava o amplo desenvolvimento de sonoridades que conferissem uma distintiva cor local à partitura. A estreia deu-se a 19 de Março de 1870 no Teatro Alla Scala, tendo redundado num êxito absoluto de repercussões intercontinentais.

Os anos subsequentes assistiram ao surgimento de novos títulos: em 1873, o Teatro Alla Scala estreava Fosca com libretto de Antonio Ghislanzoni (responsável pela Aida de Giuseppe Verdi), considerada por Gomes como a sua melhor obra. Ghislanzoni voltaria a ser o autor do texto de uma nova ópera do compositor, desta feita, Salvator Rosa, apresentada no Teatro Carlo Felice de Génova em 1874. Baseada na novela "Masaniello" de Eugéne Mirecourt, a obra retratava a revolta liderada pelo pescador Tomas Aniello contra o domínio da Espanha dos Habsburgo na Nápoles do século dezassete. Cinco anos depois, o principal teatro lírico milanês voltaria a estrear uma composição de Carlos Gomes - Maria Tudor -, com libretto de Emilio Praga a partir do drama com o mesmo título de Victor Hugo. Anos mais tarde, naquela que se viria a constituir enquanto a derradeira fase criativa do compositor, são levadas à cena as óperas Lo schiavo (Rio de Janeiro, 27 de Setembro de 1887), Condor (Teatro Alla Scala, 3 de Fevereiro de 1891), obra reveladora de uma acentuada maturidade composicional, caracterizada pelo emprego de novas formas que privilegiassem um discurso musical mais contínuo e ainda o poema vocal-sinfónico Colombo, estreado a 12 de Outubro de 1892 na cidade do Rio de Janeiro. Carlos Gomes viria a falecer em Belém do Pará a 16 de Setembro de 1896.

Estreada a 17 de Março de 1879, Maria Tudor, a sexta ópera do compositor, serve-se de um romance de Victor Hugo, adaptado por Emilio Praga e, posteriormente, concluído por Giuseppe Zanardini e Ferdinando Fontana, o qual ficciona os amores ilícitos da monarca britânica, desta feita, com um jovem conde de nome Fabiano Fabiani e a traição deste, sob falsa identidade, com uma humilde orfã, Giovanna. Após um período de menor sucesso imediatamente posterior ao franco êxito de Il Guarany, designadamente, com Fosca, o mais recente título de Gomes pretendia revitalizar o estatuto do compositor, um processo que havia sido inicializado com Salvator Rosa. Para tal, contava com um destacado elenco no qual avultavam o soprano Anna D'Ageri no papel-titular, Francesco Tamagno a cargo do sedutor Fabiani, Emma Turella no papel de Giovanna, o barítono Giuseppe Taschmann como o embaixador espanhol Don Gil e o notabilíssimo baixo belga Edouard De Reszke como Gilberto, um velho lenhador, tutor de Giovanna, desta enamorado. Contudo, o ambiente particularmente agreste que se havia instalado no meio musical milanês, marcado pelo aceso conflito entre as duas mais influentes empresas de edição de partituras, respectivamente, controladas pelos principais teatros da capital lombarda - Teatro Alla Scala e Teatro dal Verme - assegurou que qualquer novo título seria alvo de um crivo particularmente intransigente na sua severidade por parte do público. O fiasco que aguardava Maria Tudor era, praticamente, inevitável. Instantaneamente, ecos da rejeição estenderam-se a outros palcos italianos, inviabilizando o granjeio de idêntico sucesso ao de algumas das óperas que a antecederam.

Actualmente, não obstante o plano secundário ocupado por Carlos Gomes no âmbito do romantismo operático italiano, diversos foram os intérpretes de monta que, quer em palco, quer por intermédio de registos fonográficos, não se eximiram a incluir algumas das mais significativas páginas do campinense no seu legado discográfico. Ao longo do século XX, nomes como Enrico Caruso ou, mais recentemente, Placido Domingo tem contribuído para assegurar um nível mínimo de difusão de esparsas parcelas da produção do compositor. No Brasil, em idêntico período temporal, a obra de Carlos Gomes tem tido uma presença frequente nas temporadas dos mais representativos centros líricos, contando, inequivocamente, com a interpretação de alguns dos mais reverenciados cantores líricos brasileiros, entre os quais, Niza de Castro Tank, Assis Pacheco, Paulo Fortes, Aracy Bellas Campos, Diva Pieranti, Lourival Braga, Ida Miccolis, Benito Maresca, Áurea Gomes ou Fernando Teixeira. Todavia, e contrariamente ao expectável, para além de intérpretes autóctones afamadas figuras da cena internacional tomaram parte em produções levadas à cena em solo brasileiro. A tal ponto que, uma das mais eminentes Divas italianas da primeira metade do século vinte - Gina Cigna – não se coibiu de incluir uma breve impressão da sua abordagem de algumas das óperas do compositor no livro The Last Prima Donnas da autoria de Lanfranco Rasponi: 

"My list of offbeat roles is very long. In Brazil I sang in Lo schiavo by Carlos Gomes, their greatest operatic composer, even in Campinas, his birthplace. As I was always most particular about my costumes – I had my own and would never accept engagements if there was any question about this – I made inquiries about the opera, and the answer was ‘Senhora, bracelets and necklaces, and that is all.’ I managed somehow to follow these instructions. In Rio de Janeiro and São Paulo I also appeared in Gomes’ Maria Tudor – not superior music by any means, a potpourri of sundry other composers; but this Brazilian composer had a great sense of the theatre, and there never was a dull moment.”

Conquanto, em termos puramente musicais, a globalidade da produção de Gomes possa ser adversamente cotejada com a obra alguns dos seus contemporâneos, designadamente, Giuseppe Verdi, o estilo composicional denota um continuado esforço na invenção de linhas melódicas, minimamente, sugestivas ainda que nem sempre revestidas de um carácter memorável. O emprego das massas orquestrais, longe de indiciar qualquer inovação, encontra-se incrustado na melhor tradição romântica italiana. Contudo, tal como observado no parágrafo precedente, sobressai a particular atenção depositada na necessidade de criação de um efectivo e constante momentum dramático, potencialmente, gerador de uma torrente de exaltação capaz de envolver o público.

Em audição, dois segmentos, francamente, ilustrativos da manifesta teatralidade que perpassa a ópera: a grande cena da monarca que conclui o segundo acto, imediatamente, após ser confrontada com a traição de Fabiani (Vendetta! Vendetta!) e a ária que principia o acto quarto (Piu intensamente io l’amo...Oh! Mie notti d’amor). Como forma de suplemento, incluímos o concertante do terceiro acto, no qual Fabiani é denunciado perante a Corte (Su te, sciagurato).

Em função da superior fidelidade sonora comparativamente aos demais registos que compõe a reduzida discografia da obra, o Memória da Ópera elegeu uma gravação efectuada ao vivo na Ópera Nacional de Sófia (Bulgária), a 6 de Novembro de 1998. Com direcção orquestral a cargo de Luís Fernando Malheiro, formavam o elenco: Eliane Coelho (Maria Tudor), Kostadin Andreev (Fabiano Fabiani), Franco Pomponi (Don Gil de Tarragona), Elena Chavdarova-Isa (Giovanna), Svetozar Ranguelov (Gilberto), Ivan Ivanov (Lord Montagu), Biser Georgiev (Lord Clinton), Stoil Georgiev (Um pagem).   


Vendetta! Vendetta!







 

Su te, sciagurato







 

Piu intensamente io l'amo...Oh! Mie notti d'amor







sexta-feira, 25 de novembro de 2011

La Traviata, Covent Garden 13 de Janeiro de 1960

 
Seiscentas e quarenta e oito. Uma cifra respeitante à quantidade de apresentações de um intérprete num determinado papel. Creio que esta breve introdução é passível de impor respeito. A ópera? La Traviata. O intérprete? Virginia Zeani.

Nascido em 1925, o soprano de origem romena cedo se estabeleceu em Itália, onde teve a oportunidade de estudar com o lendário tenor Aureliano Pertile. Estreia-se profissionalmente a 16 de Maio de 1948 no Teatro Duse de Bolonha com a Violetta de La Traviata, substituindo Margherita Carosio no derradeiro momento. A seu lado o tenor Arrigo Pola e o barítono Anselmo Colzani. Iniciava-se assim a associação de Zeani àquele que se tornaria o papel mais emblemático da sua carreira. Uma criação que correria o Mundo até Julho de 1973 no Teatro Gentile de Fabriano, igualmente em Itália, junto a Renato Cioni e Antonio Boyer. De facto, o papel de Violetta Valèry abriu-lhe as portas dos mais prestigiados teatros do circuito lírico internacional como a Ópera de Paris (1956, ao lado de Alain Vanzo), a Staatsoper de Viena (1957, com Gianni Raimondi e Rolando Panerai, sob a direcção de Karajan) ou, numa fase posterior, o MET de Nova Iorque, com Georges Prêtre a dirigir Bruno Prevedi e Robert Merrill (Novembro de 1966). A cortesã parisiense é, da mesma forma, uma das personagens (a outra sendo Mimi em La Bohème) com as quais Zeani se apresenta no Teatro Nacional de São Carlos, na ocasião, ladeada por Flaviano Labò e Carlo Tagliabue, sob a égide de Oliviero De Fabritiis, em récitas ocorridas a 10 e 14 de Abril de 1957.

Todavia, longe de concentrar a carreira neste papel específico, não obstante os ecos alcançados no cosmos operático, o reportório de Zeani abarcava uma amplitude de estilos considerável como comprovam as suas abordagens de toda uma galeria constituída por compositores como Puccini (Mimi em La Bohème, Cio-cio-san em Madama Butterfly, Manon Lescaut e Tosca), Rossini (Desdemona em Otello, Zelmira), Donizetti (Lucia di Lammermoor, Linda di Chamounix e Maria di Rohan), Verdi (Desdemona em Otello, Aida, Gilda em Rigoletto, Elena em I Vespri Siciliani, Alzira, Lina em Stiffelio), Giordano (Fedora), Cilèa (Adriana Lecouvreur) ou mesmo Wagner (Elsa em Lohengrin, Senta em Der fliegende Holländer [O Holandês Voador / O Navio Fantasma]). De entre as suas deambulações pelo reportório moderno sobressaem a assunção de Magda Sorel na ópera O Cônsul (The Consul) de Gian Carlo Menotti, sob a direcção de Thomas Schippers no Maio Musical Florentino (1972) e A Voz Humana (La Voix Humaine) de Francis Poulenc. Ao lado do marido, o destacado baixo Nicola Rossi-Lemeni, apresentou-se não só em algumas óperas periféricas do repertório verista, designadamente, Il Piccolo Marat de Pietro Mascagni como também em obras cimeiras do reportório barroco, neste caso, Giulio Cesare de Georg Friedrich Händel e ainda determinados títulos de compositores russos menos frequentados tais como O Demónio (Demon) de Anton Rubinstein. Em Janeiro de 1957, no Scala de Milão, faz parte de um elenco verdadeiramente notável encarregue da estreia mundial da ópera Les Dialogues des Carmelites de Francis Poulenc: Gianna Pederzini, Gigliola Frazzoni, Leyla Gencer, Fiorenza Cossotto na famosa encenação da autoria de Marguerita Wallman que percorreu as mais díspares latitudes do Globo, inclusive Lisboa. Curiosamente, seria com esta mesma obra que Virgina Zeani abandonaria os palcos, numa produção levada à cena entre Outubro e Novembro de 1982 na Ópera de São Francisco e na qual se incluíam intérpretes como Leontyne Price, Régine Crespin e Carol Vaness.

Londres, Janeiro de 1960. Em Covent Garden canta-se La Traviata com Joan Sutherland, a mais novel estrela do firmamento operático que, cerca de um ano antes, havia feito furor com a sua Lucia di Lammermoor nesse mesmo teatro. No dia precedente à récita que o Memória da Ópera ora procura evocar soam os alarmes. Sutherland não se encontra em condições de actuar. É necessário encontrar rapidamente alguém que a substitua. São efectuados vários telefonemas. Um desses directamente para Viena. A solução de recurso é encontrada. Virginia Zeani é colocada às pressas num avião de forma a poder chegar a Londres muito poucas horas antes do espectáculo principiar. Sem qualquer género de ensaio, ignorando os colegas, possivelmente até o maestro. Somente o conhecimento da personagem a seu favor. Finda a récita, aquela que ficaria para os Anais da Lírica como a estreia do soprano romeno em Covent Garden salda-se num rotundo sucesso, relativamente ao qual o entusiasmo do habitualmente reservado público britânico não terá sido, de todo, alheio.

Passível de configurar a categorização de soprano "lirico-spinto", Zeani exibe, tendo em mente instrumentos de envergadura análoga, uma plasticidade admirável que a habilita a uma sólida negociação das regiões grave e aguda e a uma execução escorreita das fioriture, feito de contornos quasi heróicos dado o andamento excessivamente lesto impresso pela direcção orquestral. O timbre suficientemente redondo, polvilhado com alguns laivos metálicos, denota um dramatismo latente na expressividade que permeia um fraseado, alternadamente, tenso e de basto lirismo, concorrendo, em última instância, para a composição de uma das mais notáveis criações preservadas num papel de elevadíssima dificuldade técnico-dramática. Uma empresa cujo êxito adquire proporções de monta, considerando não só o legado advindo da apropriação de tão emblemática personagem por parte de algumas das mais celebradas intérpretes da segunda metade do século vinte, designadamente, Maria Callas, como também observando o parco corpus discográfico (comercial, entenda-se) de Zeani, comparativamente, a toda uma fímbria de cantoras líricas (Moffo, Scotto, Caballé, Freni, Cotrubas) com as qual a sua leitura da condenada cortesã ombreia.

Da récita ocorrida a 13 de Janeiro de 1960, seleccionamos o final do primeiro acto (E' strano! e' strano!...Ah, fors'e' lui...Sempre libera), o segmento que conclui o acto intermédio a partir da intervenção de Violetta (Invitato a qui seguirmi) e a ária do último acto (Teneste la promessa...Addio, del passato).

Sob a direcção de Nello Santi, compunham o elenco: Virginia Zeani (Violetta Valèry), Marie Collier (Flora Bervoix), Leah Roberts (Annina), William McAlpine (Alfredo Germont), Jess Walters (Giorgio Germont), John Dobson (Gastone), Michael Langdon (Dr. Grenvil), Forbes Robinson (Barão Douphol), Ronald Lewis (Marquês d'Obigny).


E' strano! e' strano!...Ah, fors'e' lui...Sempre libera







 

Invitato a qui seguirmi







 

Teneste la promessa...Addio, del passato







segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Gertrude Grob-Prandl: Tannhäuser, 1972


Na galeria dos grandes sopranos dramáticos wagnerianos do século vinte, nomes como Frida Leider, Kirsten Flagstad, Helen Traubel, Birgit Nilsson, Martha Mödl ou Astrid Varnay encontram, de modo mais ou menos substancial, lugar em qualquer apreciável discoteca pessoal. Existem, contudo, casos em que a superior estatura artística de um intérprete, mesmo que reconhecida, não provou ser suficiente no processo de consolidação enquanto referência, levando-o a cair num certo esquecimento. Um desses exemplos é, indubitavelmente, Gertrude Grob-Prandl.

Nascida em Viena a 11 de Novembro de 1917, é descoberta, por acaso, aquando de audições para uma apresentação amadora da Nona Sinfonia de Beethoven na escola que frequentava. É imediatamente incentivada a estudar canto, o que faz durante quatro anos. Antes do término desse período, é contratada pela Volksoper de Viena, estreando-se por volta de 1940 como Santuzza na ópera Cavalleria Rusticana de Mascagni. Seguem-se, no mesmo teatro, a Leonore do Fidelio de Beethoven e a Ariadne auf Naxos de Richard Strauss, entre diversos papéis em óperas italianas. A sua voz de volume imenso, penetrante e dotada de um timbre escuro, especialmente talhada para o reportório mais dramático, chama a atenção, entre outros, do próprio Strauss que a convida para cantar na ópera Die ägyptische Helena (A Helena egípcia). Infelizmente, um projecto a que as condicionantes da Segunda Grande Guerra puseram termo. Em Junho de 1944, estreia-se no palco maior da lírica vienense - a Staastoper - como Elsa na ópera Lohengrin de Richard Wagner ao lado da Ortud de Anny Konetzni. A 12 de Março do ano seguinte, o edifício da Ópera de Viena é completamente destruído pelas bombas das Forças Aliadas. Na tentativa de assegurar a apresentação de espectáculos com o pouco que restava, muitos intérpretes são confrontados com papéis inusitados. No caso de Grob-Prandl coube-lhe a assunção de Rosalinde da opereta Die Fledermaus de Johann Strauss Filho, num total de trinta e cinco récitas. Uma personagem que o soprano lamentará, mais tarde, não ter tido oportunidade de cantar novamente. No entanto, o potencial revelado por um instrumento declaradamente hoch-dramatisch, habilitava-a sobremaneira para os papéis mais "pesados" quer da lírica germânica como da italiana.

Em 1949, canta, pela primeira vez, a Brünnhilde da ópera Die Walküre de Richard Wagner sob a direcção de Clemens Krauss e ao lado da Sieglinde de Viorica Ursuleac. É com esta mesma ópera que, um ano mais tarde, se estreia no Colón de Buenos Aires, dirigida por Karl Böhm. Uma ocasião em que lhe foi concedida a ventura de partilhar o palco com figuras da estatura de Margarete Klose e Tiana Lemnitz. Aquele que se constituiria um dos principais papéis da sua carreia - a Isolde - cruzou-se com Grob-Prandl em Bruxelas, no âmbito de uma tournée dos corpos artísticos da Staatsoper de Viena. O êxito foi de tal modo arrebatador, ao ponto de a cantora ter sido agraciada com o título de Kammersängerin logo após o regresso à capital austríaca. Em 1951, leva a princesa irlandesa a Itália, designadamente ao Teatro San Carlo de Nápoles e ao Teatro Alla Scala de Milão, onde é dirigida por Victor de Sabata, em récitas que se encontram preservadas. Pouco presente nas temporadas dos teatro líricos norte-americanos, surgiu, não obstante, em São Francisco no Outono de 1953 para interpretar a Isolde, a Brünnhilde em Die Walküre e a Amelia da ópera Un Ballo in Maschera de Verdi.

Do reportório italiano, o papel de Turandot na ópera homónima de Puccini terá sido aquele em que imprimiu uma marca mais duradoura. Apresentando-se quer na língua original, quer em Alemão ou mesmo Inglês, fez-se ouvir em Viena, na Arena de Verona, nos Jardins de Boboli em Florença, nas Termas de Caracalla em Roma, bem como na Royal Opera House de Londres, sob a batuta de John Barbirolli. Algum tempo antes de Birgit Nilsson e Franco Corelli, já Gertrude Grob-Prandl e Giacomo Lauri-Volpi competiam entre si sobre quem manteria as notas agudas durante mais tempo.

Além das personagens supracitadas, o soprano abordou igualmente a Elektra de Richard Strauss, a Brünnhilde nas óperas Siegfried e Götterdämmerung, a Ortud do Lohengrin e a Venus do Tannhäuser.

Em 1969, após uma récita da ópera Fidelio na Ópera de Viena, Grob-Prandl depara-se com um enorme bouquet composto por 50 rosas no seu camarim, com os agradecimentos da administração. Desconhecendo o motivo na origem da tal gesto, fica a saber que aquela data marcava a sua quinquagésima apresentação no papel de Leonore naquele teatro. Curiosamente, aquando da reabertura da Staatsoper a 5 de Novembro de 1955 com esta obra, a protagonista havia sido entregue a Martha Mödl, enquanto, um mês mais tarde, Gertrude Grob-Prandl inaugurava a Staatsoper de Berlim, exactamente com o mesmo papel.

Inversamente ao que sucede com alguns intérpretes, Grob-Prandl preferiu afastar-se do universo operático da forma mais discreta possível. Um processo que se iniciou a 1 de Janeiro de 1972, data em que a cantora se despediu da sua "residência artística" - a Staastoper de Viena - interpretando a Venus da ópera Tannhäuser de Richard Wagner. No livro The Last Prima Donnas, da autoria de Lanfranco Rasponi, o soprano descreve, deste modo, as circunstâncias que envolveram a sua decisão:

"'I had made up my mind', she confessed, 'that I would stop singing the day I discovered that it was no longer an immense pleasure, to which I always looked forward with great antecipation, but an effort. And perhaps it was a mistake to stop in 1972, for I have missed my work more than I could ever imagine - it may have been a temporary sense of fatigue. Birgit Nilsson is still continuing, and there is barely six months' difference in our ages. When I appeared as Venus in Tannhäuser, in the Paris production, at my home base, the Vienna Staatsoper, it just happened that my contract was up on January 1, 1972, the date of this performance, and had to be renegotiated and renewed. It was then that I decided I would not sign a new one, which would have meant three more years, and that I would consider it my local farewell. I had, if I may say so, never sung this role better that on that night. I still had many engagements to fulfill in France and Germany, but when they were done with, I closed the chapter that had been the reason for my life and to which I had dedicated all of myself. I had always said my husband and friends that I would never consider an official goodbye performance, as to me it would have seemed like singing at my own funeral. People learned of my retirement not through any press statement but by word of mouth. (...)"

Da produção da ópera Tannhäuser a que aludimos anteriormente, o Memória da Ópera seleccionou uma gravação efectuada ao vivo a 7 de Setembro de 1971. Com uma carreira que, à data, já se estendia por cerca de três décadas, sendo dominada por papéis de acentuada exigência dramático-vocal, Gertrude Grob-Prandl exibe-se ainda a um nível assinalável. Pese embora uma menor plasticidade, fenómeno perfeitamente natural no que à maturidade de instrumentos deste porte concerne, importa ressaltar, sobremaneira, a segurança e impacto dos registos médio e agudo. Acresce uma óptima projecção da linha de canto, caracterizada por um fraseado expressivo, assente na variação das dinâmicas. Mesmo um ligeiríssimo esforço na zona de passagem não deslustra uma leitura caracterizada por um engajamento dramático que contribui, na globalidade, para uma interpretação idiomática na melhor tradição germânica. Em audição, a cena do primeiro acto entre Venus e Tannhäuser a partir da canção Dir töne Lob! Die Wunder sei'n gepriesen até ao desaparecimento do reino de Venusberg.

Sob a direcção de Berislav Klobucar, formavam o elenco: Hans Beirer (Tannhäuser), Leonie Rysanek (Elisabeth), Eberhard Wächter (Wolfram), Gertrude Grob-Prandl (Venus), Gerd Nienstedt (Landgraf), Karl Terkal (Walther), Reid Bunger (Biterolf), Kurt Equiluz (Hermann), Frederick Guthrie (Reinmar), Rita Streich (Um pastor).


Dir töne Lob! Die Wunder sei'n gepriesen









Stets soll nur dir, nur dir mein Lied ertönen!







domingo, 24 de janeiro de 2010

Mario Del Monaco: Últimos Otellos, 1972


Baseada na tragédia de William Shakespeare, Othello, the Moor of Venice (c.1603), a ópera Otello não só é considerada o pináculo da ópera romântica italiana como representa um marco em termos músico-dramáticos. Na obra em questão confluem a linguagem musical perfeitamente maturada de Giuseppe Verdi, liberta, mais do que nunca, de espartilhos formais e apontando para um discurso contínuo sem precedentes na sua produção e o libretto de Arrigo Boito, exemplo acabado de uma extraordinária adaptação do texto de um dos maiores dramaturgos da História às necessidades do drama musical, exímio ao nível da condensação da acção e da caracterização psicológica das personagens. A estreia deu-se no Teatro Alla Scala a 5 de Fevereiro de 1887. Encabeçavam o elenco o tenor Francesco Tamagno no papel-titular, o soprano Romilda Pantaleoni como Desdémona, enquanto o destacado barítono Victor Maurel assumia o vilão Iago. Verdi contava 73 anos.

Um sucesso retumbante desde a primeira récita, aquela que é considerada uma das obras-primas do reportório operático, atraiu, imediatamente, a atenção dos principais intérpretes de cada época. O carácter do protagonista, exigindo uma voz de timbre heróico e acentos dramáticos baritonais, comparável ao perfil vocal do tenor wagneriano, transformou o Mouro de Veneza num dos mais temíveis e cobiçados papéis do universo da lírica. Além do supracitado Tamagno, tenores como Jean de Reszke, Leo Slezak, Giovanni Zenatello, Francesco Merli, Giovanni Martinelli, Torsten Ralf e Ramón Vinay notabilizaram-se na interpretação da personagem. Com a progressiva e inexorável mutação dos estilos e modelos de canto, a segunda metade do século vinte assiste à aparição de novos intérpretes, de maior ou menor nomeada, entre os quais: Carlo Guichandut, Pier Miranda Ferraro, Jon Vickers, James McCracken, Dimitri Uzunov, Nikola Nikolov, Charles Craig, James King, Carlo Cossutta, Placido Domingo, Richard Cassilly, Vladimir Atlantov, Giuseppe Giacomini e Nicola Martinucci, entre outros. Todavia, não obstante a excelência de alguns dos nomes supracitados, para muitos dos amantes de ópera, Otello é sinónimo de Mario Del Monaco.

Nascido em 1915, o tenor florentino estudou no Conservatório Rossini de Pesaro, onde foi colega de Renata Tebaldi. Entre os seus professores conta-se Arturo Melocchi, cultor e divulgador da famosa técnica da "laringe descida", da qual Del Monaco viria a tornar-se o mais celebrado exemplo. Estreia-se profissionalmente a 31 de Dezembro de 1940 no Teatro Puccini de Milão no papel de Pinkerton da ópera Madama Butterfly. Com um instrumento de volume impressionante, associado a um timbre metálico e brilhante, eminentemente talhado para o reportório mais dramático, vai coleccionando sucessos um pouco por todo o lado. Até que Mario Del Monaco depara-se com a oportunidade de interpretar Otello. Corria o dia 21 de Julho de 1950. O teatro era o Colón de Buenos Aires, principal palco operático da América Latina. Ladeavam-no o soprano Delia Rigal e o então barítono Carlo Guichandut. A direcção orquestral estava a cargo de Antonino Votto. Um êxito absoluto. A partir deste momento o Otello de Verdi torna-se o "cartão de visita" de Mario Del Monaco. Apresenta-se na Cidade do México em Julho de 1951 com Clara Petrella e Giuseppe Taddei e no Metropolitan de Nova Iorque a 15 de Fevereiro de 1952, em récita única, ao lado de Eleonor Steber e Leonard Warren. Na revista Musical America, Cecil Smith descreve, deste modo, as suas impressões:

"The sheer physical power of his voice, the solidity and clarion ring of his upper tones and the baritonal strength of his lower ones, made Mr. Del Monaco seem better equipped by nature to cope with the grueling music than any Metropolitan tenor since Leo Slezak. Although he frequently seemed to be using his voice to the absolute limit of its volume, he did not get tired, and, indeed employed more color and refinement of nuance in the last two acts than he had at the beginning. The "Esultate," hurled above the noise of the storm, was truly imposing, and such other big moments as "Ora e per sempre addio" and "Si, pel ciel" (in which he was admirably seconded by Leonard Warren, the Iago) were genuinely magnificent in sound. Many moments in his singing, however, were merely crude and others seemed thoughtless, as though he had not taken time to discover the musical inflections implied by the score and the drama. When he turned his attention to expressive coloration he employed it very effectively, but too often he was content to plough through considerable passages with rather undistinguished loud singing."

"His impersonation of the character was not of a kind that is admired in this country. Before the evening was over he had used nearly every conceivable cliche of old-fashioned melodramatic acting, and several times he was so intent on making a success for Del Monaco that he quite forgot to pretend to be Otello. When this happened--usually in conjunction with loud, high notes-the continuity was interrupted by applause and cheers from the corner of the house in which the claque apparently continues to congregate on certain Italianate occasions. A good many moments in his acting did, however, seem genuine, with the result that the crudities of his deportment elsewhere seemed unfortunate and unnecessary."


Em 1954, leva a sua criação ao Teatro Alla Scala junto a Renata Tebaldi e Leonard Warren, efectua duas gravações da ópera: primeiramente para o selo Decca, sob a direcção de Alberto Erede e acompanhado por Tebaldi e Aldo Protti a que se segue um registo para a RAI com o maestro Tullio Serafin, o soprano Onelia Fineschi e o barítono Renato Capecchi. No ano seguinte, volta partilhar o palco do MET com Tebaldi e Warren. Seguem-se produções em Florença, Marselha (1956, ao lado de Régine Crespin e René Bianco) e Nápoles (1957). Em 1958, protagoniza uma nova versão para a RAI, desta vez filmada, com Rosanna Carteri e Renato Capecchi, dirigidos por Tullio Serafin. Entre 1958 e 1959, regressa ao Metropolitan de Nova Iorque para se dividir entre as Desdémonas de Renata Tebaldi e Victoria de Los Angeles, acompanhado, uma vez mais, pelo Iago de Warren. Seriam as suas últimas aparições no teatro nova-iorquino. No final da década, dá a conhecer o seu Otello ao público japonês, em récitas que contaram ainda com Gabriella Tucci e Tito Gobbi, disponíveis em vídeo. Os anos 60, assistem a um acumular de apresentações em Roma, Dallas, Palermo, Londres, Veneza e Philadelphia. Em 1961, a Decca comercializa um novo Otello com Del Monaco, Tebaldi e Protti, desta feita dirigido por Herbert von Karajan à frente da Filarmónica de Viena. Com Tebaldi e Gobbi, desloca-se com os corpos artísticos do Teatro Régio de Parma a Montreal, no âmbito da Exposição Mundial de 1967. O aproximar do final da década vê-o, entre outros locais, em Oviedo com Linda Vajna e Giuseppe Taddei (Setembro de 1967), Bari com Virginia Zeani e Licinio Montefusco (Janeiro de 1968) e Nápoles, para récitas com Elena Suliotis e Anselmo Colzani (Fevereiro de 1969). Na década de 70, com o final de carreira assomando em fundo, prossegue a sua série de exibições do Otello em teatros secundários. Em 1971, surge nas cidades de Cremona e Brescia com Antonietta Cannarile-Berdini e Aldo Protti, em Mântua com Irma Capece Minutolo e Franco Bordoni e viaja até Budapeste para uma produção com Stefánia Moldován e György Radnai. O ano de 1972 marca a despedida entre Del Monaco e o Mouro de Veneza. Em Março, encontra-se em Las Palmas junto a Maria Orán e o barítono romeno Nicolae Herlea, em Junho na localidade de Ascoli Piceno, enquanto no mês de Julho regressa, uma vez mais, a Nápoles para actuações ao lado de Maria Chiara e Cornell MacNeil. O desfecho dá-se a 21 de Novembro no Teatro La Monnaie de Bruxelas. Acompanhavam-no a jovem Katia Ricciarelli e o experiente Aldo Protti. Dez anos mais tarde, Mario Del Monaco, já retirado, passa um serão em casa rodeado de familiares e amigos. Subitamente, um enorme quadro que ali se encontrava havia décadas, retratando-o como Otello, cai, provocando grande estrondo. No dia seguinte, o tenor falecia. Tinha 67 anos. Foi enterrado no seu fato de Otello.

O Memória da Ópera alude, em seguida, às derradeiras apresentações de Mario Del Monaco no seu mais emblemático papel. Das últimas produções em que tomou parte, seleccionamos uma récita efectuada a 2 de Março de 1972 no Teatro Pérez Galdos em Las Palmas. Na época, a voz do tenor enfermava já de uma rigidez assaz pronunciada, a linha de canto carecendo de flexibilidade. O fraseado, nunca elegante com Del Monaco, encontra-se algo comprometido, a que acresce uma certa distorção da linha vocal. Determinadas frases são literalmente declamadas. Na região de passagem do registo médio para o agudo, constata-se alguma constrição na emissão. Apesar dos óbices, o tenor não deixa de tentar abordar certos trechos em piano, mormente no dueto de amor que finaliza o primeiro acto, procurando dulcificar o timbre. Além disso, a projecção e o volume vocal permanecem estarrecedores, atestando da imponência do instrumento do cantor. A caracterização dramática, nunca tributária de qualquer espécie de nuance, conserva-se visceral e elementar, afastando dúvidas da total identificação do intérprete com a personagem. Em audição, o dueto de amor do primeiro acto (Già nella notte densa), todo o segmento final do segundo acto a partir das palavras Desdemona rea!, o solilóquio Dio! Mi potevi scagliar do terceiro acto e as páginas finais da ópera (Niun mi tema).

Com direcção orquestral a cargo de Eugenio Mario Marco, a distribuição foi a seguinte: Mario Del Monaco (Otello), Maria Orán (Desdémona), Nicolae Herlea (Iago), José Mazaneda (Cassio), Nino Carta (Roderigo), Giovanni Foiani (Lodovico), Domingo Fraile (Montano), Carmen Sinovas (Emilia), José Lorente (Um arauto).


Già nella notte densa









Desdemona rea! - parte 1









Desdemona rea! - parte 2









Dio! Mi potevi scagliar









Niun mi tema







domingo, 3 de janeiro de 2010

Cavalleria Rusticana, Nápoles 17 de Janeiro de 1965


Carreira meteórica. Uma expressão que se adequa especialmente a dois mundos tão diversos e, no entanto, tão próximos como a Ópera e o Desporto em geral. Da mesma forma que existem atletas com carreiras notavelmente longevas, há aqueles que, inversamente, surgem, quais cometas, brilhando intensamente num momento para desaparecerem no ocaso no instante seguinte. Tratam-se de astros capazes de eclipsarem tudo à sua volta e que deixam uma marca duradoura. Por vezes, tão ou mais indelével do que aquela impressa pelos que permanecem durante largas décadas. No plano operático, é quase impossível pensar em carreiras meteóricas sem invocar o nome de um dos mais lídimos exemplos: Elena Souliotis.

Nascida em Atenas em 1943, filha única de um pai russo e uma mãe grega, cedo imigrou para a Argentina. Em Buenos Aires, inicia-se nas lições canto aos 16 anos com Alfredo Bonta e Jascha Galperin. Com o passar dos anos começa a demonstrar dotes vocais de monta que a levam, aos 21 anos, a Milão para estudar com Mercedes Llopart, professora de, entre outros, Alfredo Kraus, Renata Scotto e Fiorenza Cossotto. Estavamos em 1964. Logo de seguida, faz a sua estreia em ópera com a Santuzza da Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni em Nápoles. O sucesso é tremendo. Instantaneamente, chovem convites de inúmeros teatros. Souliotis embarca então numa rotina frenética. No espaço de poucos anos, interpreta o papel-titular da ópera Luisa Miller de Verdi, Amelia em Un Ballo in Maschera e estreia-se nos Estados Unidos, na Lyric Opera de Chicago como Elena na ópera Mefistofele de Arrigo Boito, junto a Alfredo Kraus, Renata Tebaldi e Nicolai Ghiaurov. Aborda a Aida, a Desdemona do Otello, as Leonoras de La Forza del Destino e Il Trovatore, La Gioconda e Anna Bolena de Donizetti. Uma lista impressionante para uma cantora em início de carreira. Entretanto, a 7 de Dezembro de 1966, Souliotis havia feito a sua estreia no Teatro Alla Scala de Milão com a Abigaille do Nabucco de Verdi, seguramente a sua mais afamada criação. Ladeavam o soprano: Giangiacomo Guelfi, Nicolai Ghiaurov, Gianni Raimondi e Gloria Lane, sob a direcção de Gianandrea Gavazzeni. O ano de 1967 viu a assunção de uma novo papel por parte da jovem Diva: a Norma de Bellini. Após a estreia na Cidade do México, no mês de Setembro, Souliotis apresentou-se, em Novembro, numa tristemente famosa récita no Carnegie Hall que contou com a presença de Maria Callas, entre outros nomes destacado da cena lírica. Com o aproximar do fim da década, o até então fabuloso instrumento dá os primeiros sinais de alerta: a aspereza do timbre torna-se desagradável, a entoação ressente-se e a mudança de registos é cada vez mais pronunciada. Mesmo assim, Elena Souliotis continua a oferecer ao público performances de substancial voltagem. Em 1968, regressa a Milão para uma nova produção de Nabucco e acrescenta mais um papel à sua galeria: a Loreley de Alfredo Catalani. Em Novembro, apresenta-se, pela primeira vez, em Londres, no teatro de Drury Lane, com o Nabucco. Em Junho do ano seguinte, estreia-se duplamente na Royal Opera House de Londres e no papel de Lady Macbeth da ópera Macbeth de Verdi. Os inícios dos anos 70 são de decadência. Em 1971, no Teatro San Carlo de Nápoles, afronta duas personagens puccinianas: a Tosca (com Amadeo Zambon e Giangiacomo Guelfi) e a Manon Lescaut (fazendo par com Plácido Domingo). Ainda regressa à capital britância, no ano seguinte, para mais um Nabucco e a Cavalleria Rusticana. O Teatro Massimo Bellini de Catania é palco de um novo papel: La Straniera de Bellini (1973). Em 1974, canta, na Ópera de Roma, a Minnie de La Fanciulla del West de Puccini. O fim estava próximo. Após um recital no Carnegie Hall, em 1976, desaparece dos circuitos. No final da década, torna a surgir, interpretando papéis secundários em ópera russa, entre os quais: Fata Morgana em O Amor das Três Laranjas de Prokofiev (Florença, Janeiro e Chicago, Setembro de 1979) e Susanna em Khovanshchina de Mussorgsky (Milão, Fevereiro de 1981). A despedida definitiva dos palcos deu-se em 2001, em Estugarda, com a Condessa da ópera Pique Dame de Tchaikovsky. Elena Souliotis faleceu em Dezembro de 2004 aos 61 anos.


Souliotis era e, de certa forma, continua a ser comparada com Maria Callas. Para lá da questão de ambas serem de origem grega e, talvez por esse facto, reuniam certas características associadas às tragédiennes tais como uma presença magnética em palco e grande força e convicção dramáticas, capazes de levar o público ao delírio com prestações electrizantes. Mais ainda do que a Divina, Souliotis teve uma carreira curta - cerca de uma década -, metade da qual a grande nível. Todavia, a falta de critério na selecção de reportório adequado ao seu jovem instrumento, impediu-a de maturar vocalmente, tendo contribuído para um declínio precoce que acabou por abreviar um percurso artístico extremamente promissor. Não obstante, no seu breve auge a voz de Elena Souliotis era, no mínimo, fulgurante. Com um volume impressionante, boa projecção, capaz de uma aplicação eficaz das dinâmicas, habitava com igual segurança as regiões grave e aguda. O emprego fastidioso da voz de peito permitia-lhe obter uma fabulosa ressonância no registo grave, apoiada pelo escurecimento do seu timbre básico. Inversamente, os agudos assumiam-se como verdadeiros clarões de potência vocálica, contrastando sobremaneira com os graves. Em suma, um instrumento portentoso ao serviço de uma intérprete beirando o limite, em termos dramáticos.

A propósito dos aspectos focados anteriormente, Ira Siff, citado num artigo de James C. Whitson para a revista Opera News de Outubro de 2007, tem o seguinte a dizer:

"One of the wonderful things about her (...) was that she had no affect. I think Elena just went out and did it. Everybody thought [her voice] was incredibly impressive but, I thought, kind of scary — like it was going to self-destruct rapidly. When you're belting up to a high L, you're not going to last."

"It's obvious from her phrasing that she worshipped her, and she clearly got Callas's message and tried to replicate it whenever she could, but I don't see a similarity in their approach to singing — except for the chest notes. I'll never forget the way [Suliotis] poured out those chest notes — it was like a huge Broadway belt. (...) People went nuts. (...) We were so desperate for a replacement, and we were turned on by that 'daredevil' thing [only she] and Maria could do. You really were swept away with the excitement of it to the point where you could overlook some shortcomings."

Após extensa referência, o Memória da Ópera lança um olhar para onde tudo começou. Na realidade, Elena Souliotis havia-se já estreado, no Verão de 1964, na Arena Flegrea de Nápoles, na última récita de uma produção da Cavalleria Rusticana. Contudo, para a História, a estreia oficial da cantora é a que teve lugar a 17 de Janeiro de 1965, no Teatro San Carlo de Nápoles, e que agora apresentamos. Em escuta, a ária de Santuzza Voi lo sapete, o Mamma, o dueto com Turiddu Tu qui, Santuzza? e o dueto com Alfio Oh! Il signor vi manda.

Sob a direcção de Franco Patanè, tomaram parte na récita: Elena Souliotis (Santuzza), Alfonso La Morena (Turiddu), Silvano Verlinghieri (Alfio), Nedda Monte (Lola), Rina Corsi (Mamma Lucia).


Voi lo sapete, o Mamma









Tu qui, Santuzza? - parte 1









Tu qui, Santuzza? - parte 2









Oh! Il signor vi manda