terça-feira, 5 de junho de 2012

Cesare Valletti: Don Giovanni, Salzburgo 1960


O reconhecimento e posterior instituição de uma determinada tipologia vocal, fundado em toda uma miríade de características detidas em comum por um dado conjunto de instrumentos, permite a identificação, por um lado, de concentrações de cariz assaz abrangente, pela extensa circunscrição de intérpretes que agregam tais como "soprano lírico-spinto". Inversamente, classificações como a de "tenor dramático", tendem a revestir-se de uma relativa singularidade discriminatória.

Em circunstâncias específicas, o estabelecimento de novos rótulos, com intuito classificativo, emana da particular concatenação de predicados num único cantor. Tal será o caso do soprano francês Cornélie Falcon (1814-1897), celebrizado pela admirável extensão e dotado de um impressivo registo grave aliado a um amplo volume, na origem do qual se encontra a designação "Falcon", passível de ser acoplada, em pleno século vinte, a intérpretes como Giulietta Simionato, Grace Bumbry, Shirley Verrett ou Waltraud Meier. Por seu turno, a expressão "barítono Martin", reportando-se ao barítono francês Jean-Blaise Martin (1768-1837), procura catalogar instrumentos caracterizados por um timbre de acentos, marcadamente, tenoris. Figuras como Jacques Janssen, Richard Stilwell ou Wolfgang Holzmair constituem-se válidos exemplos desta tipologia vocal.

Pese embora não alcançando o estatuto quasi excepcional atribuído às supracitadas tipologias, a designação "tenore di grazia" encerra, ainda actualmente, alguma especificidade. Tal como a própria expressão indicia, reportamo-nos, grosso modo, a um instrumento de timbre grácil e volumetria algo diminuta, dotado de manifesta agilidade, óptima projecção vocal e uma consequente exercitação da paleta dinâmica. A extensão vocal, ainda que tendencialmente propensa a planos, amiúde, estratosféricos, caracteriza-se, igualmente, por uma efectiva capacidade de negociação no registo mais grave. Em termos de reportório, o "tenore di grazia" identifica-se de modo mais congenial com o período belcantista, designadamente, à produção de alguns dos seus mais lídimos representantes: Gioacchino Rossini (Conde de Almaviva em Il Barbiere di Siviglia, Lindoro em L'Italiana in Algeri), Vincenzo Bellini (Elvino em La Sonnambula ou Arturo em I Puritani) e Gaetano Donizetti (Tonio em La Fille du Régiment, Nemorino em L'Elisir d'Amore). Da mesma forma, ainda que sob uma nomenclatura parcialmente diversa, determinados papéis gálicos como Nadir em Les Pêcheurs de Perles de Georges Bizet, Gérald na ópera Lakmé de Leo Delibes ou Chapelou em Le Postillon de Lonjumeau de Adolphe Adam requerem um cantor dotado de um instrumento símil.

Uma deambulação retrospectiva por entre o notabilíssimo conjunto de destacadas figuras da Lírica, activas no derradeiro século, releva, de modo mais imediato, nomes como Tomaz Alcaide, Tito Schipa, Juan Oncina, Léopold Simoneau, Luigi Alva ou Alfredo Kraus, inequivocamente, exaltados cultores da tipologia vocal em foco. Um outro intérprete digno de figurar entre a eminente estirpe estilístico-vocal ora elencada será, indubitavelmente, Cesare Valletti.

Nascido a 18 de Dezembro de 1922, o tenor romano estuda, entre outros, com um dos seus mais reverenciados predecessores estilísticos: Tito Schipa. Estreia-se profissionalmente em 1947, no Teatro Petruzzelli de Bari, como Alfredo Germont na ópera La Traviata de Giuseppe Verdi. Em Outubro de 1950, alcança alguma notoriedade no papel de Don Narciso da ópera Il Turco in Italia de Gioachino Rossini, integrando o reputado elenco de uma produção levada à cena no Teatro Eliseo de Roma: Maria Callas, Sesto Bruscantini, Mariano Stabile, Franco Calabrese, sob a égide de Gianandrea Gavazzeni. Breves meses após a precedente incursão rossiniana, é convidado a pisar o mais prestigiado palco operático italiano - o Teatro alla Scala. A 9 de Março de 1951, encarrega-se do simplório Nemorino em L'Elisir d'Amore de Gaetano Donizetti junto a Alda Noni, Piero Guelfi e Silvio Maionica (substituindo Tancredi Pasero), com direcção orquestral a cargo de Argeo Quadri. Em Junho, reencontra Maria Callas, desta feita, na Cidade do México, para uma série de récitas de La Traviata, cuja distribuição contemplava ainda Giuseppe Taddei em Giorgio Germont e Oliviero De Fabritiis no pódio, alvo de frequentes reedições discográficas.

Novos compromissos sucedem-se: apresenta-se no Teatro Nacional de São Carlos, precisamente, um ano após a estreia em Milão, no papel do Conde de Almaviva da ópera Il Barbiere di Siviglia de Rossini com Tito Gobbi, Dolores Wilson, Fernando Corena, Giulio Neri e o maestro Antonino Votto. A 19 de Setembro de 1953, dá-se a conhecer ao público norte-americano, designadamente, na Ópera de São Francisco, por intermédio da assunção do papel de Werther na ópera homónima de Jules Massenet, contracenando com Giulietta Simionato, Dorothy Warenskjold, John Lombardi e Lorenzo Alvary, numa edição em língua original assegurada por Tullio Serafin. O êxito logrado franqueia-lhe, quase instantaneamente, as portas do MET de Nova Iorque, teatro no qual debuta a 10 de Dezembro desse mesmo ano, naquela que se viria a constituir uma das suas mais indeléveis criações: Don Ottavio em Don Giovanni de Wolfgang Amadeus Mozart, ladeado por Nicola Rossi-Lemeni, Margareth Harshaw, Eleanor Steber, Erich Kunz, Roberta Peters, Lorenzo Alvary, Luben Vichey e com Max Rudolf no elmo.

No decorrer de anos subsequentes, Cesare Valletti transformar-se-ia num dos intérpretes preferenciais de entre o elenco artístico do teatro nova-iorquino, no que ao reportório lírico concerne. Em Fevereiro de 1954, assume a personagem do Conde de Almaviva em Il Barbiere di Siviglia de Rossini numa nova produção da autoria de Cyril Ritchard, contracenando com Robert Merrill, Roberta Peters, Fernando Corena e Cesare Siepi, sob a direcção de Alberto Erede. No mês de Novembro, toma parte numa edição absolutamente histórica da ópera Manon de Massenet com Victoria de los Angeles, Fernando Corena e Lorenzo Alvary, consubstanciada pela leitura idiomática de Pierre Monteux. Cerca de um ano depois, afronta, no idioma do Bardo, o papel de Ferrando em Così Fan Tutte de Mozart, numa distribuição que contemplava Eleanor Steber, Blanche Thebom, Frank Guarrera, Patrice Munsel e John Brownlee, sob a batuta de Fritz Stiedry. Nos estertores de 1955, toma, uma vez mais, parte de uma novel encenação no MET: Don Pasquale de Gaetano Donizetti, numa concepção de Dino Yannopoulos, com um juvenilíssimo Thomas Schippers a dirigir Fernando Corena, Roberta Peters e Frank Guarrera. No mês de Outubro de 1957, uma inédita produção da ópera Don Giovanni a cargo de Herbert Graf volta a ostentar o exemplar Don Ottavio de Valletti, nesta ocasião particular, em meio a uma superlativa constelação artística encimada por nomes como Cesare Siepi, Eleanor Steber, Lisa Della Casa, Fernando Corena, Roberta Peters, Theodor Uppman e Giorgio Tozzi, naquela que viria a figurar enquanto estreia do venerável maestro austríaco Karl Böhm no MET. A experiência cumulada na execução em língua inglesa, habilita-o, em Dezembro de 1958, à abordagem de Alfred em Die Fledermaus de Johann Strauss Filho, circundado por Hilde Gueden, Theodor Uppman, Roberta Peters, Blanche Thebom e Frank Guarrera, com direcção musical a cargo de Erich Leinsdorf. O dealbar de 1959 é marcado pela estreia nova-iorquina no papel de Alfredo Germont em La Traviata de Giuseppe Verdi, com o maestro Kurt Adler a dirigir Licia Albanese e Mario Sereni. O aclamado percurso de Cesare Valletti no MET sofreria um súbito revés no mês de Novembro de 1960. No decorrer do período de ensaios de uma nova produção de L'Elisir D'Amore protagonizada por Elisabeth Soderstrom, Frank Guarrera e Fernando Corena, sob a égide de Fausto Cleva, o cantor é liminarmente dispensado pela direcção artística, encabeçada pelo mítico Rudolf Bing, sendo substituído por Dino Formichini. Reiteradamente instado a regressar em posteriores temporadas, o tenor não mais retornaria.

Entretanto, em Outubro de 1958, Valletti já se havia estreado em Covent Garden, naquelas que viriam a ser as suas únicas apresentações no histórico teatro londrino, numa sequência de récitas de La Traviata com Maria Callas, Mario Zanasi e o maestro Nicola Rescigno. O cantor retomava, desta forma, uma intermitente, conquanto, frutífera parceria com La Divina, após uma célebre encenação de Luchino Visconti da ópera La Sonnambula de Vincenzo Bellini, programada pelo Teatro alla Scala em Maio de 1955, igualmente notabilizada pela direcção musical, inusitadamente, entregue a Leonard Bernstein. Em 1960, a época estival reservar-lhe-ia uma intensa participação na edição anual do Festival de Salzburgo. Apresenta-se a 6 de Agosto em recital, acompanhado pelo pianista Leo Taubmann, participando, alguns dias mais tarde, num concerto dirigido por Bernard Paumgarten, na execução de duas árias de concerto para tenor de Mozart.

No decénio de 60, após desligar-se do MET, o tenor fixa residência em Itália, desenvolvendo, simultaneamente, uma estreita colaboração com o Maio Musical Florentino, entidade com a qual se apresenta, regulamente, em diversas produções operáticas. Não obstante, entre Outubro e Novembro de 1963, volta surgir no continente norte-americano, especificamente, na Ópera de São Francisco, nos papéis de Flamand na ópera Capriccio de Richard Strauss (com Elisabeth Schwarzkopf, Thomas Stewart, Hermann Prey, Sona Cervena e Leonardo Wolovsky, sob a direcção de Georges Prêtre), Ferrando em Così Fan Tutte (o maestro húngaro Janos Ferencsik dirigia Elisabeth Schwarzkopf, Helen Vanni, Hermann Prey, Reri Grist e Leonardo Wolovsky) e Conde de Almaviva em Il Barbiere di Siviglia (dividindo o palco com Hermann Prey, Reri Grist, Elfego Esparza e Peter van der Bilt). Afastando-se, progressivamente, do circuito lírico, Cesare Valletti decide enveredar por um carreira enquanto recitalista. Pese embora, oficialmente, retirado, desde 1967, não repele o ensejo de volver uma última vez aos palcos, despedindo-se, em definitivo, no Festival de Caramoor, em Nova Iorque, assumindo o imperador romano Nero em L'Incoronazione di Poppea de Claudio Monteverdi. O cantor viria a falecer na cidade de Génova a 13 de Maio de 2000.

Tal como aflorado em linhas anteriores, a personificação de Don Ottavio em Don Giovanni de Mozart será, porventura, aquela em que terá impresso um cunho mais referencial, passível de ser auspiciosamente confrontado com uma distinta plêiade de intérpretes contemporâneos, nomeadamente, Anton Dermota, Léopold Simoneau, Luigi Alva, Fritz Wunderlich ou Nicolai Gedda. Aquando da sua estreia no MET, neste específico papel, Ronald Eyer, na publicação Musical America, teceu as seguintes considerações: 

"The musical news was made by a newcomer, Cesare Valletti, who made his debut in the dramatically negative, but musically very important, role of Don Ottavio. Mr. Valletti has brought to the Metropolitan roster one of the most beautifully schooled voices it has been my privilege to hear in a long time. It is a clean, clear lyric tenor-not of remarkable size or power as compared to our usual conception of an Italian operatic tenor, but expertly and effortlessly produced, perfectly placed and completely musical in a fluid, relaxed manner. In shaping a phrase, in taking and supporting a lovely tone and in negotiating delicate fioriture-as in the second-act aria "Il mio tesoro intanto," with its affinity for the high F-Mr. Valletti revealed genuine mastery over the vocal organ."

Para além das supracitadas intervenções, a edição do Festival de Salzburgo, ocorrida em Agosto de 1960, contemplava, entre outras, uma produção da ópera Don Giovanni de contornos autenticamente deíficos, ante o Olímpo dramático-vocal que a distribuição corporizava. Um plano de alcance aparentemente remoto no qual residia Cesare Valletti. Dotado de um timbre de perenal luzimento, fundado numa admirável homogeneidade vocal, o tenor exibe um legato inquebrantável pontuado por um soberbo controle dinâmico que o habilita ao cultivo de um fraseado beirando o diáfano no grau de elegância que encerra, contribuindo, sobremaneira, para uma execução absolutamente modelar, num papel de elevada exigência técnica. O Memória da Ópera propõe, neste sentido, a audição das árias Dalla sua pace, presente no acto introdutório, e Il mio tesoro intanto, constante do segundo acto, manifestamente elucidativas da admirável prestação do tenor.

Com direcção orquestral a cargo de Herbert von Karajan, compunham o elenco: Eberhard Waechter (Don Giovanni), Leontyne Price (Donna Anna), Cesare Valletti (Don Ottavio), Elisabeth Schwarzkopf (Donna Elvira), Walter Berry (Leporello), Graziella Sciutti (Zerlina), Rolando Panerai (Masetto), Nicola Zaccaria (O Comendador).

 
Dalla sua pace






 

Il mio tesoro intanto






4 comentários:

Paulo disse...

Obrigado, Hugo, pelo texto tão informativo e pela música que nos dá.

Fanático_Um disse...

Cada página deste blogue é uma lição de história da ópera. Como já referi várias vezes, não encontro na blogosfera (mesmo na escrita em lingua inglesa) nada de qualidade comparável. Agradeço-lhe muito, Hugo, estes ensinamentos que nos proporciona.
E que voz magnífica a de Valletti!

Jorge Ramiro disse...


Caro amigo, eu concordo com você. Que voz linda de Valetti. São essas vozes que fazem uma pessoa pode ser transportado para a interpretação de quem faz a música. É impressionante. É como ouvir Schwarzkopf.

Ashot Arakelyan disse...

http://forgottenoperasingers.blogspot.com