domingo, 24 de janeiro de 2010

Mario Del Monaco: Últimos Otellos, 1972


Baseada na tragédia de William Shakespeare, Othello, the Moor of Venice (c.1603), a ópera Otello não só é considerada o pináculo da ópera romântica italiana como representa um marco em termos músico-dramáticos. Na obra em questão confluem a linguagem musical perfeitamente maturada de Giuseppe Verdi, liberta, mais do que nunca, de espartilhos formais e apontando para um discurso contínuo sem precedentes na sua produção e o libretto de Arrigo Boito, exemplo acabado de uma extraordinária adaptação do texto de um dos maiores dramaturgos da História às necessidades do drama musical, exímio ao nível da condensação da acção e da caracterização psicológica das personagens. A estreia deu-se no Teatro Alla Scala a 5 de Fevereiro de 1887. Encabeçavam o elenco o tenor Francesco Tamagno no papel-titular, o soprano Romilda Pantaleoni como Desdémona, enquanto o destacado barítono Victor Maurel assumia o vilão Iago. Verdi contava 73 anos.

Um sucesso retumbante desde a primeira récita, aquela que é considerada uma das obras-primas do reportório operático, atraiu, imediatamente, a atenção dos principais intérpretes de cada época. O carácter do protagonista, exigindo uma voz de timbre heróico e acentos dramáticos baritonais, comparável ao perfil vocal do tenor wagneriano, transformou o Mouro de Veneza num dos mais temíveis e cobiçados papéis do universo da lírica. Além do supracitado Tamagno, tenores como Jean de Reszke, Leo Slezak, Giovanni Zenatello, Francesco Merli, Giovanni Martinelli, Torsten Ralf e Ramón Vinay notabilizaram-se na interpretação da personagem. Com a progressiva e inexorável mutação dos estilos e modelos de canto, a segunda metade do século vinte assiste à aparição de novos intérpretes, de maior ou menor nomeada, entre os quais: Carlo Guichandut, Pier Miranda Ferraro, Jon Vickers, James McCracken, Dimitri Uzunov, Nikola Nikolov, Charles Craig, James King, Carlo Cossutta, Placido Domingo, Richard Cassilly, Vladimir Atlantov, Giuseppe Giacomini e Nicola Martinucci, entre outros. Todavia, não obstante a excelência de alguns dos nomes supracitados, para muitos dos amantes de ópera, Otello é sinónimo de Mario Del Monaco.

Nascido em 1915, o tenor florentino estudou no Conservatório Rossini de Pesaro, onde foi colega de Renata Tebaldi. Entre os seus professores conta-se Arturo Melocchi, cultor e divulgador da famosa técnica da "laringe descida", da qual Del Monaco viria a tornar-se o mais celebrado exemplo. Estreia-se profissionalmente a 31 de Dezembro de 1940 no Teatro Puccini de Milão no papel de Pinkerton da ópera Madama Butterfly. Com um instrumento de volume impressionante, associado a um timbre metálico e brilhante, eminentemente talhado para o reportório mais dramático, vai coleccionando sucessos um pouco por todo o lado. Até que Mario Del Monaco depara-se com a oportunidade de interpretar Otello. Corria o dia 21 de Julho de 1950. O teatro era o Colón de Buenos Aires, principal palco operático da América Latina. Ladeavam-no o soprano Delia Rigal e o então barítono Carlo Guichandut. A direcção orquestral estava a cargo de Antonino Votto. Um êxito absoluto. A partir deste momento o Otello de Verdi torna-se o "cartão de visita" de Mario Del Monaco. Apresenta-se na Cidade do México em Julho de 1951 com Clara Petrella e Giuseppe Taddei e no Metropolitan de Nova Iorque a 15 de Fevereiro de 1952, em récita única, ao lado de Eleonor Steber e Leonard Warren. Na revista Musical America, Cecil Smith descreve, deste modo, as suas impressões:

"The sheer physical power of his voice, the solidity and clarion ring of his upper tones and the baritonal strength of his lower ones, made Mr. Del Monaco seem better equipped by nature to cope with the grueling music than any Metropolitan tenor since Leo Slezak. Although he frequently seemed to be using his voice to the absolute limit of its volume, he did not get tired, and, indeed employed more color and refinement of nuance in the last two acts than he had at the beginning. The "Esultate," hurled above the noise of the storm, was truly imposing, and such other big moments as "Ora e per sempre addio" and "Si, pel ciel" (in which he was admirably seconded by Leonard Warren, the Iago) were genuinely magnificent in sound. Many moments in his singing, however, were merely crude and others seemed thoughtless, as though he had not taken time to discover the musical inflections implied by the score and the drama. When he turned his attention to expressive coloration he employed it very effectively, but too often he was content to plough through considerable passages with rather undistinguished loud singing."

"His impersonation of the character was not of a kind that is admired in this country. Before the evening was over he had used nearly every conceivable cliche of old-fashioned melodramatic acting, and several times he was so intent on making a success for Del Monaco that he quite forgot to pretend to be Otello. When this happened--usually in conjunction with loud, high notes-the continuity was interrupted by applause and cheers from the corner of the house in which the claque apparently continues to congregate on certain Italianate occasions. A good many moments in his acting did, however, seem genuine, with the result that the crudities of his deportment elsewhere seemed unfortunate and unnecessary."


Em 1954, leva a sua criação ao Teatro Alla Scala junto a Renata Tebaldi e Leonard Warren, efectua duas gravações da ópera: primeiramente para o selo Decca, sob a direcção de Alberto Erede e acompanhado por Tebaldi e Aldo Protti a que se segue um registo para a RAI com o maestro Tullio Serafin, o soprano Onelia Fineschi e o barítono Renato Capecchi. No ano seguinte, volta partilhar o palco do MET com Tebaldi e Warren. Seguem-se produções em Florença, Marselha (1956, ao lado de Régine Crespin e René Bianco) e Nápoles (1957). Em 1958, protagoniza uma nova versão para a RAI, desta vez filmada, com Rosanna Carteri e Renato Capecchi, dirigidos por Tullio Serafin. Entre 1958 e 1959, regressa ao Metropolitan de Nova Iorque para se dividir entre as Desdémonas de Renata Tebaldi e Victoria de Los Angeles, acompanhado, uma vez mais, pelo Iago de Warren. Seriam as suas últimas aparições no teatro nova-iorquino. No final da década, dá a conhecer o seu Otello ao público japonês, em récitas que contaram ainda com Gabriella Tucci e Tito Gobbi, disponíveis em vídeo. Os anos 60, assistem a um acumular de apresentações em Roma, Dallas, Palermo, Londres, Veneza e Philadelphia. Em 1961, a Decca comercializa um novo Otello com Del Monaco, Tebaldi e Protti, desta feita dirigido por Herbert von Karajan à frente da Filarmónica de Viena. Com Tebaldi e Gobbi, desloca-se com os corpos artísticos do Teatro Régio de Parma a Montreal, no âmbito da Exposição Mundial de 1967. O aproximar do final da década vê-o, entre outros locais, em Oviedo com Linda Vajna e Giuseppe Taddei (Setembro de 1967), Bari com Virginia Zeani e Licinio Montefusco (Janeiro de 1968) e Nápoles, para récitas com Elena Suliotis e Anselmo Colzani (Fevereiro de 1969). Na década de 70, com o final de carreira assomando em fundo, prossegue a sua série de exibições do Otello em teatros secundários. Em 1971, surge nas cidades de Cremona e Brescia com Antonietta Cannarile-Berdini e Aldo Protti, em Mântua com Irma Capece Minutolo e Franco Bordoni e viaja até Budapeste para uma produção com Stefánia Moldován e György Radnai. O ano de 1972 marca a despedida entre Del Monaco e o Mouro de Veneza. Em Março, encontra-se em Las Palmas junto a Maria Orán e o barítono romeno Nicolae Herlea, em Junho na localidade de Ascoli Piceno, enquanto no mês de Julho regressa, uma vez mais, a Nápoles para actuações ao lado de Maria Chiara e Cornell MacNeil. O desfecho dá-se a 21 de Novembro no Teatro La Monnaie de Bruxelas. Acompanhavam-no a jovem Katia Ricciarelli e o experiente Aldo Protti. Dez anos mais tarde, Mario Del Monaco, já retirado, passa um serão em casa rodeado de familiares e amigos. Subitamente, um enorme quadro que ali se encontrava havia décadas, retratando-o como Otello, cai, provocando grande estrondo. No dia seguinte, o tenor falecia. Tinha 67 anos. Foi enterrado no seu fato de Otello.

O Memória da Ópera alude, em seguida, às derradeiras apresentações de Mario Del Monaco no seu mais emblemático papel. Das últimas produções em que tomou parte, seleccionamos uma récita efectuada a 2 de Março de 1972 no Teatro Pérez Galdos em Las Palmas. Na época, a voz do tenor enfermava já de uma rigidez assaz pronunciada, a linha de canto carecendo de flexibilidade. O fraseado, nunca elegante com Del Monaco, encontra-se algo comprometido, a que acresce uma certa distorção da linha vocal. Determinadas frases são literalmente declamadas. Na região de passagem do registo médio para o agudo, constata-se alguma constrição na emissão. Apesar dos óbices, o tenor não deixa de tentar abordar certos trechos em piano, mormente no dueto de amor que finaliza o primeiro acto, procurando dulcificar o timbre. Além disso, a projecção e o volume vocal permanecem estarrecedores, atestando da imponência do instrumento do cantor. A caracterização dramática, nunca tributária de qualquer espécie de nuance, conserva-se visceral e elementar, afastando dúvidas da total identificação do intérprete com a personagem. Em audição, o dueto de amor do primeiro acto (Già nella notte densa), todo o segmento final do segundo acto a partir das palavras Desdemona rea!, o solilóquio Dio! Mi potevi scagliar do terceiro acto e as páginas finais da ópera (Niun mi tema).

Com direcção orquestral a cargo de Eugenio Mario Marco, a distribuição foi a seguinte: Mario Del Monaco (Otello), Maria Orán (Desdémona), Nicolae Herlea (Iago), José Mazaneda (Cassio), Nino Carta (Roderigo), Giovanni Foiani (Lodovico), Domingo Fraile (Montano), Carmen Sinovas (Emilia), José Lorente (Um arauto).


Già nella notte densa









Desdemona rea! - parte 1









Desdemona rea! - parte 2









Dio! Mi potevi scagliar









Niun mi tema







domingo, 3 de janeiro de 2010

Cavalleria Rusticana, Nápoles 17 de Janeiro de 1965


Carreira meteórica. Uma expressão que se adequa especialmente a dois mundos tão diversos e, no entanto, tão próximos como a Ópera e o Desporto em geral. Da mesma forma que existem atletas com carreiras notavelmente longevas, há aqueles que, inversamente, surgem, quais cometas, brilhando intensamente num momento para desaparecerem no ocaso no instante seguinte. Tratam-se de astros capazes de eclipsarem tudo à sua volta e que deixam uma marca duradoura. Por vezes, tão ou mais indelével do que aquela impressa pelos que permanecem durante largas décadas. No plano operático, é quase impossível pensar em carreiras meteóricas sem invocar o nome de um dos mais lídimos exemplos: Elena Souliotis.

Nascida em Atenas em 1943, filha única de um pai russo e uma mãe grega, cedo imigrou para a Argentina. Em Buenos Aires, inicia-se nas lições canto aos 16 anos com Alfredo Bonta e Jascha Galperin. Com o passar dos anos começa a demonstrar dotes vocais de monta que a levam, aos 21 anos, a Milão para estudar com Mercedes Llopart, professora de, entre outros, Alfredo Kraus, Renata Scotto e Fiorenza Cossotto. Estavamos em 1964. Logo de seguida, faz a sua estreia em ópera com a Santuzza da Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni em Nápoles. O sucesso é tremendo. Instantaneamente, chovem convites de inúmeros teatros. Souliotis embarca então numa rotina frenética. No espaço de poucos anos, interpreta o papel-titular da ópera Luisa Miller de Verdi, Amelia em Un Ballo in Maschera e estreia-se nos Estados Unidos, na Lyric Opera de Chicago como Elena na ópera Mefistofele de Arrigo Boito, junto a Alfredo Kraus, Renata Tebaldi e Nicolai Ghiaurov. Aborda a Aida, a Desdemona do Otello, as Leonoras de La Forza del Destino e Il Trovatore, La Gioconda e Anna Bolena de Donizetti. Uma lista impressionante para uma cantora em início de carreira. Entretanto, a 7 de Dezembro de 1966, Souliotis havia feito a sua estreia no Teatro Alla Scala de Milão com a Abigaille do Nabucco de Verdi, seguramente a sua mais afamada criação. Ladeavam o soprano: Giangiacomo Guelfi, Nicolai Ghiaurov, Gianni Raimondi e Gloria Lane, sob a direcção de Gianandrea Gavazzeni. O ano de 1967 viu a assunção de uma novo papel por parte da jovem Diva: a Norma de Bellini. Após a estreia na Cidade do México, no mês de Setembro, Souliotis apresentou-se, em Novembro, numa tristemente famosa récita no Carnegie Hall que contou com a presença de Maria Callas, entre outros nomes destacado da cena lírica. Com o aproximar do fim da década, o até então fabuloso instrumento dá os primeiros sinais de alerta: a aspereza do timbre torna-se desagradável, a entoação ressente-se e a mudança de registos é cada vez mais pronunciada. Mesmo assim, Elena Souliotis continua a oferecer ao público performances de substancial voltagem. Em 1968, regressa a Milão para uma nova produção de Nabucco e acrescenta mais um papel à sua galeria: a Loreley de Alfredo Catalani. Em Novembro, apresenta-se, pela primeira vez, em Londres, no teatro de Drury Lane, com o Nabucco. Em Junho do ano seguinte, estreia-se duplamente na Royal Opera House de Londres e no papel de Lady Macbeth da ópera Macbeth de Verdi. Os inícios dos anos 70 são de decadência. Em 1971, no Teatro San Carlo de Nápoles, afronta duas personagens puccinianas: a Tosca (com Amadeo Zambon e Giangiacomo Guelfi) e a Manon Lescaut (fazendo par com Plácido Domingo). Ainda regressa à capital britância, no ano seguinte, para mais um Nabucco e a Cavalleria Rusticana. O Teatro Massimo Bellini de Catania é palco de um novo papel: La Straniera de Bellini (1973). Em 1974, canta, na Ópera de Roma, a Minnie de La Fanciulla del West de Puccini. O fim estava próximo. Após um recital no Carnegie Hall, em 1976, desaparece dos circuitos. No final da década, torna a surgir, interpretando papéis secundários em ópera russa, entre os quais: Fata Morgana em O Amor das Três Laranjas de Prokofiev (Florença, Janeiro e Chicago, Setembro de 1979) e Susanna em Khovanshchina de Mussorgsky (Milão, Fevereiro de 1981). A despedida definitiva dos palcos deu-se em 2001, em Estugarda, com a Condessa da ópera Pique Dame de Tchaikovsky. Elena Souliotis faleceu em Dezembro de 2004 aos 61 anos.


Souliotis era e, de certa forma, continua a ser comparada com Maria Callas. Para lá da questão de ambas serem de origem grega e, talvez por esse facto, reuniam certas características associadas às tragédiennes tais como uma presença magnética em palco e grande força e convicção dramáticas, capazes de levar o público ao delírio com prestações electrizantes. Mais ainda do que a Divina, Souliotis teve uma carreira curta - cerca de uma década -, metade da qual a grande nível. Todavia, a falta de critério na selecção de reportório adequado ao seu jovem instrumento, impediu-a de maturar vocalmente, tendo contribuído para um declínio precoce que acabou por abreviar um percurso artístico extremamente promissor. Não obstante, no seu breve auge a voz de Elena Souliotis era, no mínimo, fulgurante. Com um volume impressionante, boa projecção, capaz de uma aplicação eficaz das dinâmicas, habitava com igual segurança as regiões grave e aguda. O emprego fastidioso da voz de peito permitia-lhe obter uma fabulosa ressonância no registo grave, apoiada pelo escurecimento do seu timbre básico. Inversamente, os agudos assumiam-se como verdadeiros clarões de potência vocálica, contrastando sobremaneira com os graves. Em suma, um instrumento portentoso ao serviço de uma intérprete beirando o limite, em termos dramáticos.

A propósito dos aspectos focados anteriormente, Ira Siff, citado num artigo de James C. Whitson para a revista Opera News de Outubro de 2007, tem o seguinte a dizer:

"One of the wonderful things about her (...) was that she had no affect. I think Elena just went out and did it. Everybody thought [her voice] was incredibly impressive but, I thought, kind of scary — like it was going to self-destruct rapidly. When you're belting up to a high L, you're not going to last."

"It's obvious from her phrasing that she worshipped her, and she clearly got Callas's message and tried to replicate it whenever she could, but I don't see a similarity in their approach to singing — except for the chest notes. I'll never forget the way [Suliotis] poured out those chest notes — it was like a huge Broadway belt. (...) People went nuts. (...) We were so desperate for a replacement, and we were turned on by that 'daredevil' thing [only she] and Maria could do. You really were swept away with the excitement of it to the point where you could overlook some shortcomings."

Após extensa referência, o Memória da Ópera lança um olhar para onde tudo começou. Na realidade, Elena Souliotis havia-se já estreado, no Verão de 1964, na Arena Flegrea de Nápoles, na última récita de uma produção da Cavalleria Rusticana. Contudo, para a História, a estreia oficial da cantora é a que teve lugar a 17 de Janeiro de 1965, no Teatro San Carlo de Nápoles, e que agora apresentamos. Em escuta, a ária de Santuzza Voi lo sapete, o Mamma, o dueto com Turiddu Tu qui, Santuzza? e o dueto com Alfio Oh! Il signor vi manda.

Sob a direcção de Franco Patanè, tomaram parte na récita: Elena Souliotis (Santuzza), Alfonso La Morena (Turiddu), Silvano Verlinghieri (Alfio), Nedda Monte (Lola), Rina Corsi (Mamma Lucia).


Voi lo sapete, o Mamma









Tu qui, Santuzza? - parte 1









Tu qui, Santuzza? - parte 2









Oh! Il signor vi manda