domingo, 3 de janeiro de 2010

Cavalleria Rusticana, Nápoles 17 de Janeiro de 1965


Carreira meteórica. Uma expressão que se adequa especialmente a dois mundos tão diversos e, no entanto, tão próximos como a Ópera e o Desporto em geral. Da mesma forma que existem atletas com carreiras notavelmente longevas, há aqueles que, inversamente, surgem, quais cometas, brilhando intensamente num momento para desaparecerem no ocaso no instante seguinte. Tratam-se de astros capazes de eclipsarem tudo à sua volta e que deixam uma marca duradoura. Por vezes, tão ou mais indelével do que aquela impressa pelos que permanecem durante largas décadas. No plano operático, é quase impossível pensar em carreiras meteóricas sem invocar o nome de um dos mais lídimos exemplos: Elena Souliotis.

Nascida em Atenas em 1943, filha única de um pai russo e uma mãe grega, cedo imigrou para a Argentina. Em Buenos Aires, inicia-se nas lições canto aos 16 anos com Alfredo Bonta e Jascha Galperin. Com o passar dos anos começa a demonstrar dotes vocais de monta que a levam, aos 21 anos, a Milão para estudar com Mercedes Llopart, professora de, entre outros, Alfredo Kraus, Renata Scotto e Fiorenza Cossotto. Estavamos em 1964. Logo de seguida, faz a sua estreia em ópera com a Santuzza da Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni em Nápoles. O sucesso é tremendo. Instantaneamente, chovem convites de inúmeros teatros. Souliotis embarca então numa rotina frenética. No espaço de poucos anos, interpreta o papel-titular da ópera Luisa Miller de Verdi, Amelia em Un Ballo in Maschera e estreia-se nos Estados Unidos, na Lyric Opera de Chicago como Elena na ópera Mefistofele de Arrigo Boito, junto a Alfredo Kraus, Renata Tebaldi e Nicolai Ghiaurov. Aborda a Aida, a Desdemona do Otello, as Leonoras de La Forza del Destino e Il Trovatore, La Gioconda e Anna Bolena de Donizetti. Uma lista impressionante para uma cantora em início de carreira. Entretanto, a 7 de Dezembro de 1966, Souliotis havia feito a sua estreia no Teatro Alla Scala de Milão com a Abigaille do Nabucco de Verdi, seguramente a sua mais afamada criação. Ladeavam o soprano: Giangiacomo Guelfi, Nicolai Ghiaurov, Gianni Raimondi e Gloria Lane, sob a direcção de Gianandrea Gavazzeni. O ano de 1967 viu a assunção de uma novo papel por parte da jovem Diva: a Norma de Bellini. Após a estreia na Cidade do México, no mês de Setembro, Souliotis apresentou-se, em Novembro, numa tristemente famosa récita no Carnegie Hall que contou com a presença de Maria Callas, entre outros nomes destacado da cena lírica. Com o aproximar do fim da década, o até então fabuloso instrumento dá os primeiros sinais de alerta: a aspereza do timbre torna-se desagradável, a entoação ressente-se e a mudança de registos é cada vez mais pronunciada. Mesmo assim, Elena Souliotis continua a oferecer ao público performances de substancial voltagem. Em 1968, regressa a Milão para uma nova produção de Nabucco e acrescenta mais um papel à sua galeria: a Loreley de Alfredo Catalani. Em Novembro, apresenta-se, pela primeira vez, em Londres, no teatro de Drury Lane, com o Nabucco. Em Junho do ano seguinte, estreia-se duplamente na Royal Opera House de Londres e no papel de Lady Macbeth da ópera Macbeth de Verdi. Os inícios dos anos 70 são de decadência. Em 1971, no Teatro San Carlo de Nápoles, afronta duas personagens puccinianas: a Tosca (com Amadeo Zambon e Giangiacomo Guelfi) e a Manon Lescaut (fazendo par com Plácido Domingo). Ainda regressa à capital britância, no ano seguinte, para mais um Nabucco e a Cavalleria Rusticana. O Teatro Massimo Bellini de Catania é palco de um novo papel: La Straniera de Bellini (1973). Em 1974, canta, na Ópera de Roma, a Minnie de La Fanciulla del West de Puccini. O fim estava próximo. Após um recital no Carnegie Hall, em 1976, desaparece dos circuitos. No final da década, torna a surgir, interpretando papéis secundários em ópera russa, entre os quais: Fata Morgana em O Amor das Três Laranjas de Prokofiev (Florença, Janeiro e Chicago, Setembro de 1979) e Susanna em Khovanshchina de Mussorgsky (Milão, Fevereiro de 1981). A despedida definitiva dos palcos deu-se em 2001, em Estugarda, com a Condessa da ópera Pique Dame de Tchaikovsky. Elena Souliotis faleceu em Dezembro de 2004 aos 61 anos.


Souliotis era e, de certa forma, continua a ser comparada com Maria Callas. Para lá da questão de ambas serem de origem grega e, talvez por esse facto, reuniam certas características associadas às tragédiennes tais como uma presença magnética em palco e grande força e convicção dramáticas, capazes de levar o público ao delírio com prestações electrizantes. Mais ainda do que a Divina, Souliotis teve uma carreira curta - cerca de uma década -, metade da qual a grande nível. Todavia, a falta de critério na selecção de reportório adequado ao seu jovem instrumento, impediu-a de maturar vocalmente, tendo contribuído para um declínio precoce que acabou por abreviar um percurso artístico extremamente promissor. Não obstante, no seu breve auge a voz de Elena Souliotis era, no mínimo, fulgurante. Com um volume impressionante, boa projecção, capaz de uma aplicação eficaz das dinâmicas, habitava com igual segurança as regiões grave e aguda. O emprego fastidioso da voz de peito permitia-lhe obter uma fabulosa ressonância no registo grave, apoiada pelo escurecimento do seu timbre básico. Inversamente, os agudos assumiam-se como verdadeiros clarões de potência vocálica, contrastando sobremaneira com os graves. Em suma, um instrumento portentoso ao serviço de uma intérprete beirando o limite, em termos dramáticos.

A propósito dos aspectos focados anteriormente, Ira Siff, citado num artigo de James C. Whitson para a revista Opera News de Outubro de 2007, tem o seguinte a dizer:

"One of the wonderful things about her (...) was that she had no affect. I think Elena just went out and did it. Everybody thought [her voice] was incredibly impressive but, I thought, kind of scary — like it was going to self-destruct rapidly. When you're belting up to a high L, you're not going to last."

"It's obvious from her phrasing that she worshipped her, and she clearly got Callas's message and tried to replicate it whenever she could, but I don't see a similarity in their approach to singing — except for the chest notes. I'll never forget the way [Suliotis] poured out those chest notes — it was like a huge Broadway belt. (...) People went nuts. (...) We were so desperate for a replacement, and we were turned on by that 'daredevil' thing [only she] and Maria could do. You really were swept away with the excitement of it to the point where you could overlook some shortcomings."

Após extensa referência, o Memória da Ópera lança um olhar para onde tudo começou. Na realidade, Elena Souliotis havia-se já estreado, no Verão de 1964, na Arena Flegrea de Nápoles, na última récita de uma produção da Cavalleria Rusticana. Contudo, para a História, a estreia oficial da cantora é a que teve lugar a 17 de Janeiro de 1965, no Teatro San Carlo de Nápoles, e que agora apresentamos. Em escuta, a ária de Santuzza Voi lo sapete, o Mamma, o dueto com Turiddu Tu qui, Santuzza? e o dueto com Alfio Oh! Il signor vi manda.

Sob a direcção de Franco Patanè, tomaram parte na récita: Elena Souliotis (Santuzza), Alfonso La Morena (Turiddu), Silvano Verlinghieri (Alfio), Nedda Monte (Lola), Rina Corsi (Mamma Lucia).


Voi lo sapete, o Mamma









Tu qui, Santuzza? - parte 1









Tu qui, Santuzza? - parte 2









Oh! Il signor vi manda







5 comentários:

José Quintela Soares disse...

Excelente, caro Hugo.
Como sabe, Suliotis é umas das minhas preferidas, mas infelizmente anda muito esquecida.
Estragou a voz e a carreira, é certo, excedeu-se e pagou bem caro tudo isso, mas algumas das gravações que nos deixou atestam bem da sua qualidade.
Não precisava de ter imitado a Callas.

Um abraço.

Hugo Santos disse...

Caro José,

muito obrigado pelo seu comentário. No que respeita a este espaço, Suliotis não será esquecida. Afianço-lhe que, a seu tempo, voltará a ser evocada.

Abraço.

Raul disse...

Caro Hugo,
Só hoje o descobri. Cada poster merece publicação.
O nível de conteúdo e o modo como se expressa é monumental. Os maiores dos parabéns. Escolhi este poster só para dizer que a Suliotis veio a Portugal e nunca me escapou: Gioconda, Nabucco, Otelo e mais tardiamente, Aida, onde o tal desgaste era já bem evidente.

Hugo Santos disse...

Caro Raul,

não sei como lhe agradecer tão amáveis palavras. Asseguro-lhe que me fizeram ganhar o dia. Um muito sincero obrigado.

Em relação à Suliotis, a cantora estreou-se em São Carlos cerca de dois meses após a récita a que aludi no meu texto. A 19 de Março de 1965, interpreta La Gioconda ao lado de Carlo Bergonzi, Mario Zanasi, Dora Minarchi, Álvaro Malta e Bianca Berini, sob a direcção de Bruno Bartoletti. A 9 de Abril, foi a vez do Otello com James McCracken e Giangiacomo Guelfi, dirigidos por Oliviero De Fabritiis. Regressou a 18 de Março de 1966 para um Nabucco protagonizado por Guelfi e que contava ainda com Paolo Washigton, Nicola Tagger e Ada Finelli, sob a batuta de Alberto Erede. O soprano grego tornaria pela última vez a 6 de Março de 1969 para récitas da Aida junto a Bergonzi, Fiorenza Cossotto, Ivo Vinco, Eduardo Cittanti e Álvaro Malta. Nello Santi dirigia.

Anónimo disse...

Caro Hugo,
Precisamente. Vi tudo isso no Coliseu. Eu só comecei a ir ao São Carlos em 1978, quando comecei a ter um ordenado. Percebe onde quero chegar?:) Ainda tenho os programas, assinados e fotografias da Suliotis Também assinadas "A Raul con simpatia".
Raul