terça-feira, 5 de junho de 2012

Cesare Valletti: Don Giovanni, Salzburgo 1960


O reconhecimento e posterior instituição de uma determinada tipologia vocal, fundado em toda uma miríade de características detidas em comum por um dado conjunto de instrumentos, permite a identificação, por um lado, de concentrações de cariz assaz abrangente, pela extensa circunscrição de intérpretes que agregam tais como "soprano lírico-spinto". Inversamente, classificações como a de "tenor dramático", tendem a revestir-se de uma relativa singularidade discriminatória.

Em circunstâncias específicas, o estabelecimento de novos rótulos, com intuito classificativo, emana da particular concatenação de predicados num único cantor. Tal será o caso do soprano francês Cornélie Falcon (1814-1897), celebrizado pela admirável extensão e dotado de um impressivo registo grave aliado a um amplo volume, na origem do qual se encontra a designação "Falcon", passível de ser acoplada, em pleno século vinte, a intérpretes como Giulietta Simionato, Grace Bumbry, Shirley Verrett ou Waltraud Meier. Por seu turno, a expressão "barítono Martin", reportando-se ao barítono francês Jean-Blaise Martin (1768-1837), procura catalogar instrumentos caracterizados por um timbre de acentos, marcadamente, tenoris. Figuras como Jacques Janssen, Richard Stilwell ou Wolfgang Holzmair constituem-se válidos exemplos desta tipologia vocal.

Pese embora não alcançando o estatuto quasi excepcional atribuído às supracitadas tipologias, a designação "tenore di grazia" encerra, ainda actualmente, alguma especificidade. Tal como a própria expressão indicia, reportamo-nos, grosso modo, a um instrumento de timbre grácil e volumetria algo diminuta, dotado de manifesta agilidade, óptima projecção vocal e uma consequente exercitação da paleta dinâmica. A extensão vocal, ainda que tendencialmente propensa a planos, amiúde, estratosféricos, caracteriza-se, igualmente, por uma efectiva capacidade de negociação no registo mais grave. Em termos de reportório, o "tenore di grazia" identifica-se de modo mais congenial com o período belcantista, designadamente, à produção de alguns dos seus mais lídimos representantes: Gioacchino Rossini (Conde de Almaviva em Il Barbiere di Siviglia, Lindoro em L'Italiana in Algeri), Vincenzo Bellini (Elvino em La Sonnambula ou Arturo em I Puritani) e Gaetano Donizetti (Tonio em La Fille du Régiment, Nemorino em L'Elisir d'Amore). Da mesma forma, ainda que sob uma nomenclatura parcialmente diversa, determinados papéis gálicos como Nadir em Les Pêcheurs de Perles de Georges Bizet, Gérald na ópera Lakmé de Leo Delibes ou Chapelou em Le Postillon de Lonjumeau de Adolphe Adam requerem um cantor dotado de um instrumento símil.

Uma deambulação retrospectiva por entre o notabilíssimo conjunto de destacadas figuras da Lírica, activas no derradeiro século, releva, de modo mais imediato, nomes como Tomaz Alcaide, Tito Schipa, Juan Oncina, Léopold Simoneau, Luigi Alva ou Alfredo Kraus, inequivocamente, exaltados cultores da tipologia vocal em foco. Um outro intérprete digno de figurar entre a eminente estirpe estilístico-vocal ora elencada será, indubitavelmente, Cesare Valletti.

Nascido a 18 de Dezembro de 1922, o tenor romano estuda, entre outros, com um dos seus mais reverenciados predecessores estilísticos: Tito Schipa. Estreia-se profissionalmente em 1947, no Teatro Petruzzelli de Bari, como Alfredo Germont na ópera La Traviata de Giuseppe Verdi. Em Outubro de 1950, alcança alguma notoriedade no papel de Don Narciso da ópera Il Turco in Italia de Gioachino Rossini, integrando o reputado elenco de uma produção levada à cena no Teatro Eliseo de Roma: Maria Callas, Sesto Bruscantini, Mariano Stabile, Franco Calabrese, sob a égide de Gianandrea Gavazzeni. Breves meses após a precedente incursão rossiniana, é convidado a pisar o mais prestigiado palco operático italiano - o Teatro alla Scala. A 9 de Março de 1951, encarrega-se do simplório Nemorino em L'Elisir d'Amore de Gaetano Donizetti junto a Alda Noni, Piero Guelfi e Silvio Maionica (substituindo Tancredi Pasero), com direcção orquestral a cargo de Argeo Quadri. Em Junho, reencontra Maria Callas, desta feita, na Cidade do México, para uma série de récitas de La Traviata, cuja distribuição contemplava ainda Giuseppe Taddei em Giorgio Germont e Oliviero De Fabritiis no pódio, alvo de frequentes reedições discográficas.

Novos compromissos sucedem-se: apresenta-se no Teatro Nacional de São Carlos, precisamente, um ano após a estreia em Milão, no papel do Conde de Almaviva da ópera Il Barbiere di Siviglia de Rossini com Tito Gobbi, Dolores Wilson, Fernando Corena, Giulio Neri e o maestro Antonino Votto. A 19 de Setembro de 1953, dá-se a conhecer ao público norte-americano, designadamente, na Ópera de São Francisco, por intermédio da assunção do papel de Werther na ópera homónima de Jules Massenet, contracenando com Giulietta Simionato, Dorothy Warenskjold, John Lombardi e Lorenzo Alvary, numa edição em língua original assegurada por Tullio Serafin. O êxito logrado franqueia-lhe, quase instantaneamente, as portas do MET de Nova Iorque, teatro no qual debuta a 10 de Dezembro desse mesmo ano, naquela que se viria a constituir uma das suas mais indeléveis criações: Don Ottavio em Don Giovanni de Wolfgang Amadeus Mozart, ladeado por Nicola Rossi-Lemeni, Margareth Harshaw, Eleanor Steber, Erich Kunz, Roberta Peters, Lorenzo Alvary, Luben Vichey e com Max Rudolf no elmo.

No decorrer de anos subsequentes, Cesare Valletti transformar-se-ia num dos intérpretes preferenciais de entre o elenco artístico do teatro nova-iorquino, no que ao reportório lírico concerne. Em Fevereiro de 1954, assume a personagem do Conde de Almaviva em Il Barbiere di Siviglia de Rossini numa nova produção da autoria de Cyril Ritchard, contracenando com Robert Merrill, Roberta Peters, Fernando Corena e Cesare Siepi, sob a direcção de Alberto Erede. No mês de Novembro, toma parte numa edição absolutamente histórica da ópera Manon de Massenet com Victoria de los Angeles, Fernando Corena e Lorenzo Alvary, consubstanciada pela leitura idiomática de Pierre Monteux. Cerca de um ano depois, afronta, no idioma do Bardo, o papel de Ferrando em Così Fan Tutte de Mozart, numa distribuição que contemplava Eleanor Steber, Blanche Thebom, Frank Guarrera, Patrice Munsel e John Brownlee, sob a batuta de Fritz Stiedry. Nos estertores de 1955, toma, uma vez mais, parte de uma novel encenação no MET: Don Pasquale de Gaetano Donizetti, numa concepção de Dino Yannopoulos, com um juvenilíssimo Thomas Schippers a dirigir Fernando Corena, Roberta Peters e Frank Guarrera. No mês de Outubro de 1957, uma inédita produção da ópera Don Giovanni a cargo de Herbert Graf volta a ostentar o exemplar Don Ottavio de Valletti, nesta ocasião particular, em meio a uma superlativa constelação artística encimada por nomes como Cesare Siepi, Eleanor Steber, Lisa Della Casa, Fernando Corena, Roberta Peters, Theodor Uppman e Giorgio Tozzi, naquela que viria a figurar enquanto estreia do venerável maestro austríaco Karl Böhm no MET. A experiência cumulada na execução em língua inglesa, habilita-o, em Dezembro de 1958, à abordagem de Alfred em Die Fledermaus de Johann Strauss Filho, circundado por Hilde Gueden, Theodor Uppman, Roberta Peters, Blanche Thebom e Frank Guarrera, com direcção musical a cargo de Erich Leinsdorf. O dealbar de 1959 é marcado pela estreia nova-iorquina no papel de Alfredo Germont em La Traviata de Giuseppe Verdi, com o maestro Kurt Adler a dirigir Licia Albanese e Mario Sereni. O aclamado percurso de Cesare Valletti no MET sofreria um súbito revés no mês de Novembro de 1960. No decorrer do período de ensaios de uma nova produção de L'Elisir D'Amore protagonizada por Elisabeth Soderstrom, Frank Guarrera e Fernando Corena, sob a égide de Fausto Cleva, o cantor é liminarmente dispensado pela direcção artística, encabeçada pelo mítico Rudolf Bing, sendo substituído por Dino Formichini. Reiteradamente instado a regressar em posteriores temporadas, o tenor não mais retornaria.

Entretanto, em Outubro de 1958, Valletti já se havia estreado em Covent Garden, naquelas que viriam a ser as suas únicas apresentações no histórico teatro londrino, numa sequência de récitas de La Traviata com Maria Callas, Mario Zanasi e o maestro Nicola Rescigno. O cantor retomava, desta forma, uma intermitente, conquanto, frutífera parceria com La Divina, após uma célebre encenação de Luchino Visconti da ópera La Sonnambula de Vincenzo Bellini, programada pelo Teatro alla Scala em Maio de 1955, igualmente notabilizada pela direcção musical, inusitadamente, entregue a Leonard Bernstein. Em 1960, a época estival reservar-lhe-ia uma intensa participação na edição anual do Festival de Salzburgo. Apresenta-se a 6 de Agosto em recital, acompanhado pelo pianista Leo Taubmann, participando, alguns dias mais tarde, num concerto dirigido por Bernard Paumgarten, na execução de duas árias de concerto para tenor de Mozart.

No decénio de 60, após desligar-se do MET, o tenor fixa residência em Itália, desenvolvendo, simultaneamente, uma estreita colaboração com o Maio Musical Florentino, entidade com a qual se apresenta, regulamente, em diversas produções operáticas. Não obstante, entre Outubro e Novembro de 1963, volta surgir no continente norte-americano, especificamente, na Ópera de São Francisco, nos papéis de Flamand na ópera Capriccio de Richard Strauss (com Elisabeth Schwarzkopf, Thomas Stewart, Hermann Prey, Sona Cervena e Leonardo Wolovsky, sob a direcção de Georges Prêtre), Ferrando em Così Fan Tutte (o maestro húngaro Janos Ferencsik dirigia Elisabeth Schwarzkopf, Helen Vanni, Hermann Prey, Reri Grist e Leonardo Wolovsky) e Conde de Almaviva em Il Barbiere di Siviglia (dividindo o palco com Hermann Prey, Reri Grist, Elfego Esparza e Peter van der Bilt). Afastando-se, progressivamente, do circuito lírico, Cesare Valletti decide enveredar por um carreira enquanto recitalista. Pese embora, oficialmente, retirado, desde 1967, não repele o ensejo de volver uma última vez aos palcos, despedindo-se, em definitivo, no Festival de Caramoor, em Nova Iorque, assumindo o imperador romano Nero em L'Incoronazione di Poppea de Claudio Monteverdi. O cantor viria a falecer na cidade de Génova a 13 de Maio de 2000.

Tal como aflorado em linhas anteriores, a personificação de Don Ottavio em Don Giovanni de Mozart será, porventura, aquela em que terá impresso um cunho mais referencial, passível de ser auspiciosamente confrontado com uma distinta plêiade de intérpretes contemporâneos, nomeadamente, Anton Dermota, Léopold Simoneau, Luigi Alva, Fritz Wunderlich ou Nicolai Gedda. Aquando da sua estreia no MET, neste específico papel, Ronald Eyer, na publicação Musical America, teceu as seguintes considerações: 

"The musical news was made by a newcomer, Cesare Valletti, who made his debut in the dramatically negative, but musically very important, role of Don Ottavio. Mr. Valletti has brought to the Metropolitan roster one of the most beautifully schooled voices it has been my privilege to hear in a long time. It is a clean, clear lyric tenor-not of remarkable size or power as compared to our usual conception of an Italian operatic tenor, but expertly and effortlessly produced, perfectly placed and completely musical in a fluid, relaxed manner. In shaping a phrase, in taking and supporting a lovely tone and in negotiating delicate fioriture-as in the second-act aria "Il mio tesoro intanto," with its affinity for the high F-Mr. Valletti revealed genuine mastery over the vocal organ."

Para além das supracitadas intervenções, a edição do Festival de Salzburgo, ocorrida em Agosto de 1960, contemplava, entre outras, uma produção da ópera Don Giovanni de contornos autenticamente deíficos, ante o Olímpo dramático-vocal que a distribuição corporizava. Um plano de alcance aparentemente remoto no qual residia Cesare Valletti. Dotado de um timbre de perenal luzimento, fundado numa admirável homogeneidade vocal, o tenor exibe um legato inquebrantável pontuado por um soberbo controle dinâmico que o habilita ao cultivo de um fraseado beirando o diáfano no grau de elegância que encerra, contribuindo, sobremaneira, para uma execução absolutamente modelar, num papel de elevada exigência técnica. O Memória da Ópera propõe, neste sentido, a audição das árias Dalla sua pace, presente no acto introdutório, e Il mio tesoro intanto, constante do segundo acto, manifestamente elucidativas da admirável prestação do tenor.

Com direcção orquestral a cargo de Herbert von Karajan, compunham o elenco: Eberhard Waechter (Don Giovanni), Leontyne Price (Donna Anna), Cesare Valletti (Don Ottavio), Elisabeth Schwarzkopf (Donna Elvira), Walter Berry (Leporello), Graziella Sciutti (Zerlina), Rolando Panerai (Masetto), Nicola Zaccaria (O Comendador).

 
Dalla sua pace






 

Il mio tesoro intanto






terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Ghena Dimitrova: La Forza del Destino, Estrasburgo 1972


A carreira de um cantor lírico pode processar-se de modo diverso. Intérpretes há cuja estreia em papeis de destaque os guinda, quase instantaneamente, à mais fúlgida constelação operática. Inversamente, existem aqueles que após um discreto dealbar, vão solidificando a sua posição, por vezes, aguardando aquela oportunidade que transmute irreversivelmente o seu percurso, tal como sucedeu a Montserrat Caballé a 20 de Abril de 1965, ao substituir Marilyn Horne no papel-titular da ópera Lucrezia Borgia de Donizetti, no Carnegie Hall, em Nova Iorque, facto que a alcandorou inequivocamente ao primeiro plano da Lírica mundial. Encontramos, ainda, profissionais cuja óptima impressão inicial, consubstanciada quer por participações vitoriosas em prestigiados concursos de canto, quer por exibições de elevado nível, ainda que reconhecidas, não logrou surtir o efeito mobilizador espectável, deixando uma impressão algo contraproducente. Tal terá sido o caso do soprano búlgaro Ghena Dimitrova.

Nascida a 6 de Maio de 1941, ingressou no Conservatório de Sófia onde teve oportunidade de estudar Canto com o barítono Christo Brambarov. A 27 de Dezembro de 1967, na Ópera de Sófia, a incapacidade quase concomitante de dois sopranos em afrontar o mortífero papel de Abigaille na ópera Nabucco de Giuseppe Verdi confere-lhe a oportunidade de se estrear profissionalmente num papel de destaque. Sem qualquer tipo de preparação, Dimitrova ultrapassa, galhardamente, o desafio ao qual se havia proposto. Nos três anos subsequentes, torna-se presença assídua no principal palco lírico do seu país-natal assumindo, para lá da princesa babilónia (personagem que se viria a revelar absolutamente emblemática na carreira da cantora), papeis tão díspares como Emma na ópera Khovanshchina de Modest Mussorgsky e Leonora em Il Trovatore de Giuseppe Verdi. Em Maio de 1970, a vitória alcançada na quarta edição do Concurso Internacional para Jovens Cantores Líricos, levado a cabo na Ópera de Sófia, confere-lhe a atribuição de uma bolsa de aperfeiçoamento vocal em Itália. No país transalpino, Dimitrova ingressa na Academia do Teatro Alla Scalla, instituição na qual estuda com Renato Pastorino, Enza Ferrari, Margherita Carosio e Gina Cigna.

Em Junho de 1972, a assunção do papel de Amelia na ópera Un Ballo in Maschera de Verdi alça-a ao pódio do prestigiado Concurso Internacional "Toti Dal Monte" de Treviso. No final desse mesmo ano, exibe-se, no respectivo Teatro Comunale, junto dos demais vencedores do certame (o tenor Ottavio Garaventa, os barítonos Giuliano Bernardi e Antonio Salvadori e o meio-soprano Christina Anghelakova) na obra que a havia consagrado meses antes. O sucesso obtido abre-lhe, de modo imediato, as portas do Teatro Régio de Parma onde Dimitrova tem a oportunidade de enfrentar, porventura, a mais temível das "tribos" operáticas italianas. Ladeada pelo jovem Jose Carreras, Piero Cappuccilli e Mirna Pecile, sob a direcção de Giuseppe Patanè, o soprano é ovacionado, sem reservas, pelo exigente público parmesão. Pese embora o percurso, aparentemente, ascendente trilhado pela intérprete, os triunfos aqui relatados não terão encontrado eco junto dos teatros líricos de maior nomeada. De facto, logo após a frutuosa participação no concurso ocorrido em Treviso, Dimitrova estreia-se, com Jean Brazzi e Pali Marinov, na Tosca de Giacomo Puccini no Grand Theatre de Tours (França). Logo de seguida, encontra-se em Bordéus num novo papel - a Aida de Giuseppe Verdi - ladeada por Peter Gougaloff e Irina Arkhipova. Em Março de 1974, interpreta novamente a princesa etíope, desta feita, em Las Palmas, integrando um elenco composto por Carlo Bergonzi, Christina Anghelakova, Giampiero Mastromei, Paolo Washington e Giovanni Foiani, dirigidos por Michelangelo Veltri. Em Abril, regressa a um palco italiano, alternando a sua Abigaille com Elena Suliotis no Teatro Massimo de Palermo. Cornell MacNeil e Boris Christoff eram os destacados intérpretes masculinos.

Em Setembro desse mesmo ano, dá-se a conhecer ao público sul-americano num exigente recital no paradigmático Teatro Colón de Buenos Aires. Regressa a Itália, designadamente, a Treviso para a Minnie da ópera La Fanciulla del West de Giacomo Puccini, ombreando com Renato Francesconi e Giangiacomo Guelfi (Novembro de 1974). Em Junho de 1975, o soprano búlgaro desloca-se a Saragoça para um Andrea Chenier de Umberto Giordano com Placido Domingo e Vicente Sardinero. A época estival que ora principiava seria, contudo, pontuada por uma expansão de latitudes sul-americanas. Em Caracas reencontra Domingo e Cappuccilli em dois títulos da produção verdiana: Ernani (ainda com Jerome Hines em Don Ruy) e Un Ballo in Maschera (Barbara Conrad assumia Ulrica). Em Outubro, tem lugar uma incursão inicial na cena lírica brasileira: o Teatro Municipal de São Paulo acolhe a sua Aida, juntamente com Francisco Lazaro, Maria Luisa Nave, Garbis Boyagian, Mario Rinaudo e Carlo Del Bosco, sob a égide de Giuseppe Morelli. Cerca de um mês depois, a estreia nas temporadas do Gran Teatre del Liceu, em Barcelona, faz-se por intermédio da Amelia de Un Ballo in Maschera com Giorgio Casellato-Lamberti, Renato Bruson e Adriana Stamenova. Escassas semanas mais tarde, leva a sua Maddalena de Coigny da ópera Andrea Chenier à Cidade do México. Tornando ao Velho Continente, afronta, pela primeira vez, uma das personagens que a celebrizaria: a gélida princesa Turandot, na ópera homónima de Puccini. O Teatro Comunale de Treviso abrigava um novel triunfo de Ghena Dimitrova, rodeada por Piero Visconti, Rita Talarico e Giancarlo Luccardi. Os primeiros meses de 1976 transcorrem em França: no mês de Fevereiro encarrega-se da Leonora de Il Trovatore em Avignon com Peter Gougaloff, Stoyan Popov e Michele Vilma; em Março, uma outra Leonora - a da ópera La Forza del Destino - aguardava-a em Angers junto a Renato Francesconi e Lorenzo Saccomani. Finalmente, Abril vê-a no papel de Floria Tosca, desta feita, em Rouen, dividindo o palco com o Cavaradossi de Giorgio Merighi. A cidade de Caracas acolhia-a em Maio para uma produção de La Fanciulla del West (Nicola Martinucci interpretava Dick Johnson e Louis Quilico o xerife Jack Rance) e uma outra de Tosca (com Ruben Dominguez e, novamente, Quilico). O público gaulês testemunhou o regresso de Dimitrova, designadamente, a Marselha, em Outubro de 1976, com um Ernani no qual avultavam Nunzio Todisco, Franco Bordoni e Georg Pappas, com direcção orquestral a cargo de Carlo Felice Cillario. Em Barcelona, encarrega-se do papel-titular na ópera Manon Lescaut de Puccini, ladeada por Francisco Lazaro e Attilio D'Orazi. O soprano concluía o ano volvendo a determinadas "origens" com a Amelia de Un Ballo in Maschera, em Treviso, desta feita, integrando um elenco formado por Vincenzo Bello, Antonio Salvadori, Nicoletta Ciliento e Alida Ferrarini, dirigidos por Carlo Franci.

No mês de Abril de 1977, Ghena Dimitrova desloca-se a Valência para uma Tosca com Placido Domingo, Attilio D'Orazi e o maestro Alberto Zedda. De retorno ao continente americano, aguardava-a um duplo compromisso na capital venezuelana: Santuzza na ópera Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni, contracenando com Nicola Martinucci e Richard Fredricks e a protagonista em Manon Lescaut de Puccini. Algumas semanas mais tarde, em Buenos Aires, encarna Turandot no prestigiado Teatro Colón, novamente com Nicola Martinucci. Em Novembro, depara-mo-nos com o soprano búlgaro em Nice, local onde interpreta, pela primeira vez, um dos mais representativos papeis do seu reportório: Gioconda na ópera homónima de Amilcare Ponchielli, liderando um elenco formado por Ottavio Garaventa, Franco Bordoni, Michele Vilma e Agostino Ferrin, sob direcção de António de Almeida. O ano de 1978 inicia-se, igualmente, em solo gálico, designadamente, em Avignon, com um Don Carlo onde avultam Gianfranco Cecchele, Bonaldo Giaiotti, Bianca Berini, Stoyan Popov e Gérard Serkoyan. Entre os meses de Março e Maio, oscilando entre os continentes europeu e sul-americano, desloca-se à Cidade do México para uma produção da ópera Nabucco encimada por intérpretes búlgaros e regressa a França para um Macbeth em Marselha com Matteo Manuguerra, Pierre Thau e Beniamino Prior. Após incursão inaugural pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro com Turandot, ladeada por Ruben Dominguez e Maria Lúcia Godoy, apresenta-se em Espanha, retornando, respectivamente, a Valência (Manon Lescaut com Renato Francesconi e Antonio Blancas) e Las Palmas (Nabucco, circundada por Juan Pons, Paul Plishka e Luis Lima). O Verão desse ano seria marcado por uma produção da ópera Don Carlo no Teatro Colón. A distribuição abarcava nomes como Nicola Martinucci, Matteo Manuguerra, Nicolai Ghiuselev, Irina Bogachova e William Wildermann, sob a égide de Francesco Molinari-Pradelli.

Em determinado momento, a exigente rotina exercitada por Ghena Dimitrova ao longo desta fase inicial principiou a suscitar uma vaga de interesse no meio musical germânico. De facto, novas perspectivas abriam-se em Novembro de 1978 com a estreia do soprano em Hamburgo com a Leonora de Il Trovatore integrada num elenco formado por Juan Lloveras, Vicente Sardinero e Ruza Baldani, com direcção a cargo de Nello Santi. Após apresentações em Bari na ópera Un Ballo in Maschera com Ottavio Garaventa, Piero Cappuccilli e Lella Stamos, no mês de Janeiro, Tosca em Rouen junto a Nicola Martinucci e Kari Nurmela (Fevereiro) e um Ernani em Las Palmas protagonizado por Francisco Lazaro, Wassilli Janulako e Nicolai Ghiuselev (Março de 1979), Dimitrova é convidada a estrear-se na Ópera do Estado da Baviera, em Munique. A 13 de Maio exibe-se enquanto Elisabetta di Valois na ópera Don Carlo de Giuseppe Verdi. Novamente com Nello Santi no elmo, o elenco contemplava ainda Carlo Cossutta, Renato Bruson e Lorenzo Gaetani. O sucesso alcançado habilita-a, cerca de um mês depois, a um regresso a este mesmo palco, desta feita, na ópera Tosca com os demais vértices do trio protagonista assegurados por Benito Maresca e Leif Roar. O Estio é dividido entre o Rio de Janeiro (Il Trovatore com Ruben Dominguez, Benito di Bella e Bianca Berini) e Ravenna (partilhando o palco com Renato Bruson e Bonaldo Giaiotti na ópera Nabucco). Seria precisamente com este mesmo título que o soprano búlgaro encerraria o ano, em Avignon, com Kostas Paskalis, Salvatore Fisichella e, uma vez mais, Giaiotti.

Em Janeiro de 1980, Dimitrova encontra-se novamente em Munique. O seu estatuto principia a consolidar-se por intermédio de récitas das óperas Don Carlo (com Simon Estes, Wolfgang Brendel e Livia Budai) e Un Ballo in Maschera (Jose Carreras interpretava o monarca sueco). No mês seguinte, estabelece-se em França, reduto reiteradamente frequentado, com a ópera Tosca: primeiramente, em Orleans junto a Jose Todaro e Lajos Miller e, poucos dias mais tarde, em Rouen com Ottavio Garaventa em Cavaradossi. Volve a terras germânicas, em Abril, para um Nabucco na Deutsche Oper am Rhein (Dusseldorf) com Anthony Baldwin, Peter Meven e William Holley, sob a direcção de Alberto Erede. No mês de Maio, em Munique, interpreta a Leonora de La Forza del Destino ombreando com Veriano Luchetti e Wolfgang Brendel; em Junho, após um Don Carlo em Marselha com Giacomo Aragall, Giorgio Zancanaro, Bonaldo Giaiotti e Sandra Browne, retorna a Hamburgo com a Abigaille da ópera Nabucco e à capital bávara em apresentações adicionais de La Forza del Destino.

O percurso firme e paulatino trilhado por Dimitrova deparar-se-ia com um momento charneira a 10 de Julho de 1980 num dos mais tradicionais e emblemáticos palcos mundiais: a Arena de Verona. A ópera era La Gioconda, o elenco reunia colossos da magnitude de Luciano Pavarotti e Piero Cappuccilli, em torno dos quais gravitavam nomes de sólida estatura como Maria Luisa Nave, Bonaldo Giaiotti e Patricia Payne. O maestro Anton Guadagno ocupava o pódio. Emergindo gloriosamente de um elenco em supremo estado de graça, o soprano estabelecia-se definitivamente entre os mais notáveis intérpretes do firmamento lírico, inequivocamente aclamada por um delirante público rendido a um instrumento de proporções, aparentemente, inexauríveis na massiva capacidade impactante e admirável arsenal técnico. Convertando-se, quase instantaneamente, numa dilecta do público veronês, o nome de Ghena Dimitrova não tardaria a encabeçar sucessivas temporadas em alguns dos mais prestigiados teatros líricos mundiais, designadamente, a Ópera de Viena (Setembro de 1983, após um circunscrito conjunto de discretas aparições entre 1978 e 1979), o Teatro Alla Scala (Dezembro de 1983), o londrino Covent Garden (Julho de 1985) ou, nos estertores da década, o Metropolitan de Nova Iorque (Dezembro de 1987), obrigatoriamente, em papeis de elevada exigência técnico-dramática. O soprano búlgaro viria a falecer na cidade italiana de Milão a 11 de Junho de 2005.

No período imediatamente anterior à vitória obtida no concurso de Treviso, Ghena Dimitrova havia iniciado um périplo pelos mais diversos palcos líricos franceses interpretando a desditosa Leonora di Vargas da ópera La Forza del Destino de Giuseppe Verdi, empresa que haveria de estender-se por cerca de um ano. Será precisamente numa destas récitas em particular que o Memória de Ópera deter-se-á, por intermédio de uma preservação efectuada ao vivo na Ópera Nacional do Reno, em Estrasburgo, a 7 de Maio de 1972. A intérprete em destaque patenteia já uma voz perfeitamente modelada, caracterizada por um acentuado contraste tímbrico entre graves corpóreos e uma região aguda de um poderio fulgurante. Não obstante a assimetria observada, o soprano sucede na manutenção de uma homogeneidade de emissão e um notável domínio do espectro dinâmico a que acresce um insuspeito lirismo na abordagem do fraseado, aspecto que, numa fase posterior, acabaria por claudicar ante o metal vocálico que se apoderaria inapelavelmente do portentoso instrumento.

Em escuta, a ária do acto inicial (Me pellegrina ed orfana), o dueto do segundo acto entre Leonora e o Padre Guardiano (Or siam soli...Più tranquilla, l'alma sento...Se voi scacciate questa pentita...Sull'alba il piede all'eremo) e a célebre ária do derradeiro acto (Pace, pace, mio Dio!).

O maestro Alain Lombard dirigia Ghena Dimitrova (Leonora di Vargas), João Gibin (Don Alvaro), Lorenzo Saccomani (Don Carlo), Silvano Pagliuca (Padre Guardiano), Giuseppe Lamacchia (Fra Melitone), Mirna Pecile (Preziosilla).
  

Me pellegrina ed orfana






 

Or siam soli...






 

Pace, pace, mio Dio!