segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Gertrude Grob-Prandl: Tannhäuser, 1972


Na galeria dos grandes sopranos dramáticos wagnerianos do século vinte, nomes como Frida Leider, Kirsten Flagstad, Helen Traubel, Birgit Nilsson, Martha Mödl ou Astrid Varnay encontram, de modo mais ou menos substancial, lugar em qualquer apreciável discoteca pessoal. Existem, contudo, casos em que a superior estatura artística de um intérprete, mesmo que reconhecida, não provou ser suficiente no processo de consolidação enquanto referência, levando-o a cair num certo esquecimento. Um desses exemplos é, indubitavelmente, Gertrude Grob-Prandl.

Nascida em Viena a 11 de Novembro de 1917, é descoberta, por acaso, aquando de audições para uma apresentação amadora da Nona Sinfonia de Beethoven na escola que frequentava. É imediatamente incentivada a estudar canto, o que faz durante quatro anos. Antes do término desse período, é contratada pela Volksoper de Viena, estreando-se por volta de 1940 como Santuzza na ópera Cavalleria Rusticana de Mascagni. Seguem-se, no mesmo teatro, a Leonore do Fidelio de Beethoven e a Ariadne auf Naxos de Richard Strauss, entre diversos papéis em óperas italianas. A sua voz de volume imenso, penetrante e dotada de um timbre escuro, especialmente talhada para o reportório mais dramático, chama a atenção, entre outros, do próprio Strauss que a convida para cantar na ópera Die ägyptische Helena (A Helena egípcia). Infelizmente, um projecto a que as condicionantes da Segunda Grande Guerra puseram termo. Em Junho de 1944, estreia-se no palco maior da lírica vienense - a Staastoper - como Elsa na ópera Lohengrin de Richard Wagner ao lado da Ortud de Anny Konetzni. A 12 de Março do ano seguinte, o edifício da Ópera de Viena é completamente destruído pelas bombas das Forças Aliadas. Na tentativa de assegurar a apresentação de espectáculos com o pouco que restava, muitos intérpretes são confrontados com papéis inusitados. No caso de Grob-Prandl coube-lhe a assunção de Rosalinde da opereta Die Fledermaus de Johann Strauss Filho, num total de trinta e cinco récitas. Uma personagem que o soprano lamentará, mais tarde, não ter tido oportunidade de cantar novamente. No entanto, o potencial revelado por um instrumento declaradamente hoch-dramatisch, habilitava-a sobremaneira para os papéis mais "pesados" quer da lírica germânica como da italiana.

Em 1949, canta, pela primeira vez, a Brünnhilde da ópera Die Walküre de Richard Wagner sob a direcção de Clemens Krauss e ao lado da Sieglinde de Viorica Ursuleac. É com esta mesma ópera que, um ano mais tarde, se estreia no Colón de Buenos Aires, dirigida por Karl Böhm. Uma ocasião em que lhe foi concedida a ventura de partilhar o palco com figuras da estatura de Margarete Klose e Tiana Lemnitz. Aquele que se constituiria um dos principais papéis da sua carreia - a Isolde - cruzou-se com Grob-Prandl em Bruxelas, no âmbito de uma tournée dos corpos artísticos da Staatsoper de Viena. O êxito foi de tal modo arrebatador, ao ponto de a cantora ter sido agraciada com o título de Kammersängerin logo após o regresso à capital austríaca. Em 1951, leva a princesa irlandesa a Itália, designadamente ao Teatro San Carlo de Nápoles e ao Teatro Alla Scala de Milão, onde é dirigida por Victor de Sabata, em récitas que se encontram preservadas. Pouco presente nas temporadas dos teatro líricos norte-americanos, surgiu, não obstante, em São Francisco no Outono de 1953 para interpretar a Isolde, a Brünnhilde em Die Walküre e a Amelia da ópera Un Ballo in Maschera de Verdi.

Do reportório italiano, o papel de Turandot na ópera homónima de Puccini terá sido aquele em que imprimiu uma marca mais duradoura. Apresentando-se quer na língua original, quer em Alemão ou mesmo Inglês, fez-se ouvir em Viena, na Arena de Verona, nos Jardins de Boboli em Florença, nas Termas de Caracalla em Roma, bem como na Royal Opera House de Londres, sob a batuta de John Barbirolli. Algum tempo antes de Birgit Nilsson e Franco Corelli, já Gertrude Grob-Prandl e Giacomo Lauri-Volpi competiam entre si sobre quem manteria as notas agudas durante mais tempo.

Além das personagens supracitadas, o soprano abordou igualmente a Elektra de Richard Strauss, a Brünnhilde nas óperas Siegfried e Götterdämmerung, a Ortud do Lohengrin e a Venus do Tannhäuser.

Em 1969, após uma récita da ópera Fidelio na Ópera de Viena, Grob-Prandl depara-se com um enorme bouquet composto por 50 rosas no seu camarim, com os agradecimentos da administração. Desconhecendo o motivo na origem da tal gesto, fica a saber que aquela data marcava a sua quinquagésima apresentação no papel de Leonore naquele teatro. Curiosamente, aquando da reabertura da Staatsoper a 5 de Novembro de 1955 com esta obra, a protagonista havia sido entregue a Martha Mödl, enquanto, um mês mais tarde, Gertrude Grob-Prandl inaugurava a Staatsoper de Berlim, exactamente com o mesmo papel.

Inversamente ao que sucede com alguns intérpretes, Grob-Prandl preferiu afastar-se do universo operático da forma mais discreta possível. Um processo que se iniciou a 1 de Janeiro de 1972, data em que a cantora se despediu da sua "residência artística" - a Staastoper de Viena - interpretando a Venus da ópera Tannhäuser de Richard Wagner. No livro The Last Prima Donnas, da autoria de Lanfranco Rasponi, o soprano descreve, deste modo, as circunstâncias que envolveram a sua decisão:

"'I had made up my mind', she confessed, 'that I would stop singing the day I discovered that it was no longer an immense pleasure, to which I always looked forward with great antecipation, but an effort. And perhaps it was a mistake to stop in 1972, for I have missed my work more than I could ever imagine - it may have been a temporary sense of fatigue. Birgit Nilsson is still continuing, and there is barely six months' difference in our ages. When I appeared as Venus in Tannhäuser, in the Paris production, at my home base, the Vienna Staatsoper, it just happened that my contract was up on January 1, 1972, the date of this performance, and had to be renegotiated and renewed. It was then that I decided I would not sign a new one, which would have meant three more years, and that I would consider it my local farewell. I had, if I may say so, never sung this role better that on that night. I still had many engagements to fulfill in France and Germany, but when they were done with, I closed the chapter that had been the reason for my life and to which I had dedicated all of myself. I had always said my husband and friends that I would never consider an official goodbye performance, as to me it would have seemed like singing at my own funeral. People learned of my retirement not through any press statement but by word of mouth. (...)"

Da produção da ópera Tannhäuser a que aludimos anteriormente, o Memória da Ópera seleccionou uma gravação efectuada ao vivo a 7 de Setembro de 1971. Com uma carreira que, à data, já se estendia por cerca de três décadas, sendo dominada por papéis de acentuada exigência dramático-vocal, Gertrude Grob-Prandl exibe-se ainda a um nível assinalável. Pese embora uma menor plasticidade, fenómeno perfeitamente natural no que à maturidade de instrumentos deste porte concerne, importa ressaltar, sobremaneira, a segurança e impacto dos registos médio e agudo. Acresce uma óptima projecção da linha de canto, caracterizada por um fraseado expressivo, assente na variação das dinâmicas. Mesmo um ligeiríssimo esforço na zona de passagem não deslustra uma leitura caracterizada por um engajamento dramático que contribui, na globalidade, para uma interpretação idiomática na melhor tradição germânica. Em audição, a cena do primeiro acto entre Venus e Tannhäuser a partir da canção Dir töne Lob! Die Wunder sei'n gepriesen até ao desaparecimento do reino de Venusberg.

Sob a direcção de Berislav Klobucar, formavam o elenco: Hans Beirer (Tannhäuser), Leonie Rysanek (Elisabeth), Eberhard Wächter (Wolfram), Gertrude Grob-Prandl (Venus), Gerd Nienstedt (Landgraf), Karl Terkal (Walther), Reid Bunger (Biterolf), Kurt Equiluz (Hermann), Frederick Guthrie (Reinmar), Rita Streich (Um pastor).


Dir töne Lob! Die Wunder sei'n gepriesen









Stets soll nur dir, nur dir mein Lied ertönen!







domingo, 24 de janeiro de 2010

Mario Del Monaco: Últimos Otellos, 1972


Baseada na tragédia de William Shakespeare, Othello, the Moor of Venice (c.1603), a ópera Otello não só é considerada o pináculo da ópera romântica italiana como representa um marco em termos músico-dramáticos. Na obra em questão confluem a linguagem musical perfeitamente maturada de Giuseppe Verdi, liberta, mais do que nunca, de espartilhos formais e apontando para um discurso contínuo sem precedentes na sua produção e o libretto de Arrigo Boito, exemplo acabado de uma extraordinária adaptação do texto de um dos maiores dramaturgos da História às necessidades do drama musical, exímio ao nível da condensação da acção e da caracterização psicológica das personagens. A estreia deu-se no Teatro Alla Scala a 5 de Fevereiro de 1887. Encabeçavam o elenco o tenor Francesco Tamagno no papel-titular, o soprano Romilda Pantaleoni como Desdémona, enquanto o destacado barítono Victor Maurel assumia o vilão Iago. Verdi contava 73 anos.

Um sucesso retumbante desde a primeira récita, aquela que é considerada uma das obras-primas do reportório operático, atraiu, imediatamente, a atenção dos principais intérpretes de cada época. O carácter do protagonista, exigindo uma voz de timbre heróico e acentos dramáticos baritonais, comparável ao perfil vocal do tenor wagneriano, transformou o Mouro de Veneza num dos mais temíveis e cobiçados papéis do universo da lírica. Além do supracitado Tamagno, tenores como Jean de Reszke, Leo Slezak, Giovanni Zenatello, Francesco Merli, Giovanni Martinelli, Torsten Ralf e Ramón Vinay notabilizaram-se na interpretação da personagem. Com a progressiva e inexorável mutação dos estilos e modelos de canto, a segunda metade do século vinte assiste à aparição de novos intérpretes, de maior ou menor nomeada, entre os quais: Carlo Guichandut, Pier Miranda Ferraro, Jon Vickers, James McCracken, Dimitri Uzunov, Nikola Nikolov, Charles Craig, James King, Carlo Cossutta, Placido Domingo, Richard Cassilly, Vladimir Atlantov, Giuseppe Giacomini e Nicola Martinucci, entre outros. Todavia, não obstante a excelência de alguns dos nomes supracitados, para muitos dos amantes de ópera, Otello é sinónimo de Mario Del Monaco.

Nascido em 1915, o tenor florentino estudou no Conservatório Rossini de Pesaro, onde foi colega de Renata Tebaldi. Entre os seus professores conta-se Arturo Melocchi, cultor e divulgador da famosa técnica da "laringe descida", da qual Del Monaco viria a tornar-se o mais celebrado exemplo. Estreia-se profissionalmente a 31 de Dezembro de 1940 no Teatro Puccini de Milão no papel de Pinkerton da ópera Madama Butterfly. Com um instrumento de volume impressionante, associado a um timbre metálico e brilhante, eminentemente talhado para o reportório mais dramático, vai coleccionando sucessos um pouco por todo o lado. Até que Mario Del Monaco depara-se com a oportunidade de interpretar Otello. Corria o dia 21 de Julho de 1950. O teatro era o Colón de Buenos Aires, principal palco operático da América Latina. Ladeavam-no o soprano Delia Rigal e o então barítono Carlo Guichandut. A direcção orquestral estava a cargo de Antonino Votto. Um êxito absoluto. A partir deste momento o Otello de Verdi torna-se o "cartão de visita" de Mario Del Monaco. Apresenta-se na Cidade do México em Julho de 1951 com Clara Petrella e Giuseppe Taddei e no Metropolitan de Nova Iorque a 15 de Fevereiro de 1952, em récita única, ao lado de Eleonor Steber e Leonard Warren. Na revista Musical America, Cecil Smith descreve, deste modo, as suas impressões:

"The sheer physical power of his voice, the solidity and clarion ring of his upper tones and the baritonal strength of his lower ones, made Mr. Del Monaco seem better equipped by nature to cope with the grueling music than any Metropolitan tenor since Leo Slezak. Although he frequently seemed to be using his voice to the absolute limit of its volume, he did not get tired, and, indeed employed more color and refinement of nuance in the last two acts than he had at the beginning. The "Esultate," hurled above the noise of the storm, was truly imposing, and such other big moments as "Ora e per sempre addio" and "Si, pel ciel" (in which he was admirably seconded by Leonard Warren, the Iago) were genuinely magnificent in sound. Many moments in his singing, however, were merely crude and others seemed thoughtless, as though he had not taken time to discover the musical inflections implied by the score and the drama. When he turned his attention to expressive coloration he employed it very effectively, but too often he was content to plough through considerable passages with rather undistinguished loud singing."

"His impersonation of the character was not of a kind that is admired in this country. Before the evening was over he had used nearly every conceivable cliche of old-fashioned melodramatic acting, and several times he was so intent on making a success for Del Monaco that he quite forgot to pretend to be Otello. When this happened--usually in conjunction with loud, high notes-the continuity was interrupted by applause and cheers from the corner of the house in which the claque apparently continues to congregate on certain Italianate occasions. A good many moments in his acting did, however, seem genuine, with the result that the crudities of his deportment elsewhere seemed unfortunate and unnecessary."


Em 1954, leva a sua criação ao Teatro Alla Scala junto a Renata Tebaldi e Leonard Warren, efectua duas gravações da ópera: primeiramente para o selo Decca, sob a direcção de Alberto Erede e acompanhado por Tebaldi e Aldo Protti a que se segue um registo para a RAI com o maestro Tullio Serafin, o soprano Onelia Fineschi e o barítono Renato Capecchi. No ano seguinte, volta partilhar o palco do MET com Tebaldi e Warren. Seguem-se produções em Florença, Marselha (1956, ao lado de Régine Crespin e René Bianco) e Nápoles (1957). Em 1958, protagoniza uma nova versão para a RAI, desta vez filmada, com Rosanna Carteri e Renato Capecchi, dirigidos por Tullio Serafin. Entre 1958 e 1959, regressa ao Metropolitan de Nova Iorque para se dividir entre as Desdémonas de Renata Tebaldi e Victoria de Los Angeles, acompanhado, uma vez mais, pelo Iago de Warren. Seriam as suas últimas aparições no teatro nova-iorquino. No final da década, dá a conhecer o seu Otello ao público japonês, em récitas que contaram ainda com Gabriella Tucci e Tito Gobbi, disponíveis em vídeo. Os anos 60, assistem a um acumular de apresentações em Roma, Dallas, Palermo, Londres, Veneza e Philadelphia. Em 1961, a Decca comercializa um novo Otello com Del Monaco, Tebaldi e Protti, desta feita dirigido por Herbert von Karajan à frente da Filarmónica de Viena. Com Tebaldi e Gobbi, desloca-se com os corpos artísticos do Teatro Régio de Parma a Montreal, no âmbito da Exposição Mundial de 1967. O aproximar do final da década vê-o, entre outros locais, em Oviedo com Linda Vajna e Giuseppe Taddei (Setembro de 1967), Bari com Virginia Zeani e Licinio Montefusco (Janeiro de 1968) e Nápoles, para récitas com Elena Suliotis e Anselmo Colzani (Fevereiro de 1969). Na década de 70, com o final de carreira assomando em fundo, prossegue a sua série de exibições do Otello em teatros secundários. Em 1971, surge nas cidades de Cremona e Brescia com Antonietta Cannarile-Berdini e Aldo Protti, em Mântua com Irma Capece Minutolo e Franco Bordoni e viaja até Budapeste para uma produção com Stefánia Moldován e György Radnai. O ano de 1972 marca a despedida entre Del Monaco e o Mouro de Veneza. Em Março, encontra-se em Las Palmas junto a Maria Orán e o barítono romeno Nicolae Herlea, em Junho na localidade de Ascoli Piceno, enquanto no mês de Julho regressa, uma vez mais, a Nápoles para actuações ao lado de Maria Chiara e Cornell MacNeil. O desfecho dá-se a 21 de Novembro no Teatro La Monnaie de Bruxelas. Acompanhavam-no a jovem Katia Ricciarelli e o experiente Aldo Protti. Dez anos mais tarde, Mario Del Monaco, já retirado, passa um serão em casa rodeado de familiares e amigos. Subitamente, um enorme quadro que ali se encontrava havia décadas, retratando-o como Otello, cai, provocando grande estrondo. No dia seguinte, o tenor falecia. Tinha 67 anos. Foi enterrado no seu fato de Otello.

O Memória da Ópera alude, em seguida, às derradeiras apresentações de Mario Del Monaco no seu mais emblemático papel. Das últimas produções em que tomou parte, seleccionamos uma récita efectuada a 2 de Março de 1972 no Teatro Pérez Galdos em Las Palmas. Na época, a voz do tenor enfermava já de uma rigidez assaz pronunciada, a linha de canto carecendo de flexibilidade. O fraseado, nunca elegante com Del Monaco, encontra-se algo comprometido, a que acresce uma certa distorção da linha vocal. Determinadas frases são literalmente declamadas. Na região de passagem do registo médio para o agudo, constata-se alguma constrição na emissão. Apesar dos óbices, o tenor não deixa de tentar abordar certos trechos em piano, mormente no dueto de amor que finaliza o primeiro acto, procurando dulcificar o timbre. Além disso, a projecção e o volume vocal permanecem estarrecedores, atestando da imponência do instrumento do cantor. A caracterização dramática, nunca tributária de qualquer espécie de nuance, conserva-se visceral e elementar, afastando dúvidas da total identificação do intérprete com a personagem. Em audição, o dueto de amor do primeiro acto (Già nella notte densa), todo o segmento final do segundo acto a partir das palavras Desdemona rea!, o solilóquio Dio! Mi potevi scagliar do terceiro acto e as páginas finais da ópera (Niun mi tema).

Com direcção orquestral a cargo de Eugenio Mario Marco, a distribuição foi a seguinte: Mario Del Monaco (Otello), Maria Orán (Desdémona), Nicolae Herlea (Iago), José Mazaneda (Cassio), Nino Carta (Roderigo), Giovanni Foiani (Lodovico), Domingo Fraile (Montano), Carmen Sinovas (Emilia), José Lorente (Um arauto).


Già nella notte densa









Desdemona rea! - parte 1









Desdemona rea! - parte 2









Dio! Mi potevi scagliar









Niun mi tema







domingo, 3 de janeiro de 2010

Cavalleria Rusticana, Nápoles 17 de Janeiro de 1965


Carreira meteórica. Uma expressão que se adequa especialmente a dois mundos tão diversos e, no entanto, tão próximos como a Ópera e o Desporto em geral. Da mesma forma que existem atletas com carreiras notavelmente longevas, há aqueles que, inversamente, surgem, quais cometas, brilhando intensamente num momento para desaparecerem no ocaso no instante seguinte. Tratam-se de astros capazes de eclipsarem tudo à sua volta e que deixam uma marca duradoura. Por vezes, tão ou mais indelével do que aquela impressa pelos que permanecem durante largas décadas. No plano operático, é quase impossível pensar em carreiras meteóricas sem invocar o nome de um dos mais lídimos exemplos: Elena Souliotis.

Nascida em Atenas em 1943, filha única de um pai russo e uma mãe grega, cedo imigrou para a Argentina. Em Buenos Aires, inicia-se nas lições canto aos 16 anos com Alfredo Bonta e Jascha Galperin. Com o passar dos anos começa a demonstrar dotes vocais de monta que a levam, aos 21 anos, a Milão para estudar com Mercedes Llopart, professora de, entre outros, Alfredo Kraus, Renata Scotto e Fiorenza Cossotto. Estavamos em 1964. Logo de seguida, faz a sua estreia em ópera com a Santuzza da Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni em Nápoles. O sucesso é tremendo. Instantaneamente, chovem convites de inúmeros teatros. Souliotis embarca então numa rotina frenética. No espaço de poucos anos, interpreta o papel-titular da ópera Luisa Miller de Verdi, Amelia em Un Ballo in Maschera e estreia-se nos Estados Unidos, na Lyric Opera de Chicago como Elena na ópera Mefistofele de Arrigo Boito, junto a Alfredo Kraus, Renata Tebaldi e Nicolai Ghiaurov. Aborda a Aida, a Desdemona do Otello, as Leonoras de La Forza del Destino e Il Trovatore, La Gioconda e Anna Bolena de Donizetti. Uma lista impressionante para uma cantora em início de carreira. Entretanto, a 7 de Dezembro de 1966, Souliotis havia feito a sua estreia no Teatro Alla Scala de Milão com a Abigaille do Nabucco de Verdi, seguramente a sua mais afamada criação. Ladeavam o soprano: Giangiacomo Guelfi, Nicolai Ghiaurov, Gianni Raimondi e Gloria Lane, sob a direcção de Gianandrea Gavazzeni. O ano de 1967 viu a assunção de uma novo papel por parte da jovem Diva: a Norma de Bellini. Após a estreia na Cidade do México, no mês de Setembro, Souliotis apresentou-se, em Novembro, numa tristemente famosa récita no Carnegie Hall que contou com a presença de Maria Callas, entre outros nomes destacado da cena lírica. Com o aproximar do fim da década, o até então fabuloso instrumento dá os primeiros sinais de alerta: a aspereza do timbre torna-se desagradável, a entoação ressente-se e a mudança de registos é cada vez mais pronunciada. Mesmo assim, Elena Souliotis continua a oferecer ao público performances de substancial voltagem. Em 1968, regressa a Milão para uma nova produção de Nabucco e acrescenta mais um papel à sua galeria: a Loreley de Alfredo Catalani. Em Novembro, apresenta-se, pela primeira vez, em Londres, no teatro de Drury Lane, com o Nabucco. Em Junho do ano seguinte, estreia-se duplamente na Royal Opera House de Londres e no papel de Lady Macbeth da ópera Macbeth de Verdi. Os inícios dos anos 70 são de decadência. Em 1971, no Teatro San Carlo de Nápoles, afronta duas personagens puccinianas: a Tosca (com Amadeo Zambon e Giangiacomo Guelfi) e a Manon Lescaut (fazendo par com Plácido Domingo). Ainda regressa à capital britância, no ano seguinte, para mais um Nabucco e a Cavalleria Rusticana. O Teatro Massimo Bellini de Catania é palco de um novo papel: La Straniera de Bellini (1973). Em 1974, canta, na Ópera de Roma, a Minnie de La Fanciulla del West de Puccini. O fim estava próximo. Após um recital no Carnegie Hall, em 1976, desaparece dos circuitos. No final da década, torna a surgir, interpretando papéis secundários em ópera russa, entre os quais: Fata Morgana em O Amor das Três Laranjas de Prokofiev (Florença, Janeiro e Chicago, Setembro de 1979) e Susanna em Khovanshchina de Mussorgsky (Milão, Fevereiro de 1981). A despedida definitiva dos palcos deu-se em 2001, em Estugarda, com a Condessa da ópera Pique Dame de Tchaikovsky. Elena Souliotis faleceu em Dezembro de 2004 aos 61 anos.


Souliotis era e, de certa forma, continua a ser comparada com Maria Callas. Para lá da questão de ambas serem de origem grega e, talvez por esse facto, reuniam certas características associadas às tragédiennes tais como uma presença magnética em palco e grande força e convicção dramáticas, capazes de levar o público ao delírio com prestações electrizantes. Mais ainda do que a Divina, Souliotis teve uma carreira curta - cerca de uma década -, metade da qual a grande nível. Todavia, a falta de critério na selecção de reportório adequado ao seu jovem instrumento, impediu-a de maturar vocalmente, tendo contribuído para um declínio precoce que acabou por abreviar um percurso artístico extremamente promissor. Não obstante, no seu breve auge a voz de Elena Souliotis era, no mínimo, fulgurante. Com um volume impressionante, boa projecção, capaz de uma aplicação eficaz das dinâmicas, habitava com igual segurança as regiões grave e aguda. O emprego fastidioso da voz de peito permitia-lhe obter uma fabulosa ressonância no registo grave, apoiada pelo escurecimento do seu timbre básico. Inversamente, os agudos assumiam-se como verdadeiros clarões de potência vocálica, contrastando sobremaneira com os graves. Em suma, um instrumento portentoso ao serviço de uma intérprete beirando o limite, em termos dramáticos.

A propósito dos aspectos focados anteriormente, Ira Siff, citado num artigo de James C. Whitson para a revista Opera News de Outubro de 2007, tem o seguinte a dizer:

"One of the wonderful things about her (...) was that she had no affect. I think Elena just went out and did it. Everybody thought [her voice] was incredibly impressive but, I thought, kind of scary — like it was going to self-destruct rapidly. When you're belting up to a high L, you're not going to last."

"It's obvious from her phrasing that she worshipped her, and she clearly got Callas's message and tried to replicate it whenever she could, but I don't see a similarity in their approach to singing — except for the chest notes. I'll never forget the way [Suliotis] poured out those chest notes — it was like a huge Broadway belt. (...) People went nuts. (...) We were so desperate for a replacement, and we were turned on by that 'daredevil' thing [only she] and Maria could do. You really were swept away with the excitement of it to the point where you could overlook some shortcomings."

Após extensa referência, o Memória da Ópera lança um olhar para onde tudo começou. Na realidade, Elena Souliotis havia-se já estreado, no Verão de 1964, na Arena Flegrea de Nápoles, na última récita de uma produção da Cavalleria Rusticana. Contudo, para a História, a estreia oficial da cantora é a que teve lugar a 17 de Janeiro de 1965, no Teatro San Carlo de Nápoles, e que agora apresentamos. Em escuta, a ária de Santuzza Voi lo sapete, o Mamma, o dueto com Turiddu Tu qui, Santuzza? e o dueto com Alfio Oh! Il signor vi manda.

Sob a direcção de Franco Patanè, tomaram parte na récita: Elena Souliotis (Santuzza), Alfonso La Morena (Turiddu), Silvano Verlinghieri (Alfio), Nedda Monte (Lola), Rina Corsi (Mamma Lucia).


Voi lo sapete, o Mamma









Tu qui, Santuzza? - parte 1









Tu qui, Santuzza? - parte 2









Oh! Il signor vi manda