quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Carlos Gomes: Maria Tudor, Sofia 1998



Em termos operáticos, a segunda metade do século XIX italiano encontra-se, grosso modo, dominada pela produção de um compositor: Giuseppe Verdi. Figura de altíssimo relevo na cultura italiana, o génio do Mestre de Bussetto logrou eclipsar muitos dos seus contemporâneos, a maioria dos quais encontram-se completamente olvidados nos nossos dias. Exceptuando nomes como Amilcare Ponchielli, cuja principal ópera - La Gioconda - permanece no reportório dos principais teatros líricos, Filippo Marchetti - recordado, sobretudo, pelo seu Ruy Blas, baseado na obra homónima de Victor Hugo -, Alfredo Catalani, apologista da corrente wagneriana, e algumas figuras identificadas com o movimento artístico conhecido como Scapigliatura, designadamente, o compositor e libretista Arrigo Boito, um outro nome que, amiúde, é invocado em ligação com este período é o do compositor brasileiro Carlos Gomes.

Nascido a 11 de Julho de 1836 na cidade de Campinas, cedo começa a revelar uma particular apetência pelo estudo de partituras operáticas, nomeadamente da obra verdiana. O interesse manifestado pelo jovem Gomes face ao universo da Lírica produziria os primeiros frutos no dia 4 de Setembro de 1861, data em é apresentada, na cidade do Rio de Janeiro, a sua primeira ópera: A Noite do Castelo. Baseada na obra de um dos principais vultos do romantismo literário português - António Feliciano de Castilho -, a composição granjeia um enorme sucesso e admiração por parte do público, constituindo-se um inequívoco triunfo para o jovem compositor. Cerca de dois anos mais tarde, a 15 de Setembro de 1863, Carlos Gomes vivencia uma nova jornada de glória ao levar à cena o seu segundo título - Joana de Flandres -, novamente com texto em português, desta feita do escritor brasileiro Salvador de Mendonça. O reconhecimento definitivo da elite musical brasileira não se fez tardar. Nesse mesmo ano, parte para Itália onde estuda no Conservatório de Milão com o compositor Lauro Rossi. Em 1866, surge uma primeira obra cénica – a opereta Se sa minga, em dialecto milanês - a qual tem seguimento com nova incursão em moldes similares: Nella luna (1868).

Não obstante o relativo prestígio proporcionado por estas duas obras no meio musical da capital lombarda, faltava um impulso definitivo que o catapultasse para a primeira linha da Lírica italiana. A materialização dos anseios do jovem Gomes dar-se-ia por intermédio da obra de um dos mais destacados nomes da literatura brasileira: O Guarani de José de Alencar. Com libretto a cargo de Antonio Scalvini, estavam lançados os fundamentos para a composição daquela que, até hoje, se perfila como a ópera mais emblemática do compositor: Il Guarany. O enredo, propiciando uma ambiência marcadamente exótica, colocava em cena índios Guaranis e Aimorés, nobres portugueses e aventureiros espanhóis e possibilitava o amplo desenvolvimento de sonoridades que conferissem uma distintiva cor local à partitura. A estreia deu-se a 19 de Março de 1870 no Teatro Alla Scala, tendo redundado num êxito absoluto de repercussões intercontinentais.

Os anos subsequentes assistiram ao surgimento de novos títulos: em 1873, o Teatro Alla Scala estreava Fosca com libretto de Antonio Ghislanzoni (responsável pela Aida de Giuseppe Verdi), considerada por Gomes como a sua melhor obra. Ghislanzoni voltaria a ser o autor do texto de uma nova ópera do compositor, desta feita, Salvator Rosa, apresentada no Teatro Carlo Felice de Génova em 1874. Baseada na novela "Masaniello" de Eugéne Mirecourt, a obra retratava a revolta liderada pelo pescador Tomas Aniello contra o domínio da Espanha dos Habsburgo na Nápoles do século dezassete. Cinco anos depois, o principal teatro lírico milanês voltaria a estrear uma composição de Carlos Gomes - Maria Tudor -, com libretto de Emilio Praga a partir do drama com o mesmo título de Victor Hugo. Anos mais tarde, naquela que se viria a constituir enquanto a derradeira fase criativa do compositor, são levadas à cena as óperas Lo schiavo (Rio de Janeiro, 27 de Setembro de 1887), Condor (Teatro Alla Scala, 3 de Fevereiro de 1891), obra reveladora de uma acentuada maturidade composicional, caracterizada pelo emprego de novas formas que privilegiassem um discurso musical mais contínuo e ainda o poema vocal-sinfónico Colombo, estreado a 12 de Outubro de 1892 na cidade do Rio de Janeiro. Carlos Gomes viria a falecer em Belém do Pará a 16 de Setembro de 1896.

Estreada a 17 de Março de 1879, Maria Tudor, a sexta ópera do compositor, serve-se de um romance de Victor Hugo, adaptado por Emilio Praga e, posteriormente, concluído por Giuseppe Zanardini e Ferdinando Fontana, o qual ficciona os amores ilícitos da monarca britânica, desta feita, com um jovem conde de nome Fabiano Fabiani e a traição deste, sob falsa identidade, com uma humilde orfã, Giovanna. Após um período de menor sucesso imediatamente posterior ao franco êxito de Il Guarany, designadamente, com Fosca, o mais recente título de Gomes pretendia revitalizar o estatuto do compositor, um processo que havia sido inicializado com Salvator Rosa. Para tal, contava com um destacado elenco no qual avultavam o soprano Anna D'Ageri no papel-titular, Francesco Tamagno a cargo do sedutor Fabiani, Emma Turella no papel de Giovanna, o barítono Giuseppe Taschmann como o embaixador espanhol Don Gil e o notabilíssimo baixo belga Edouard De Reszke como Gilberto, um velho lenhador, tutor de Giovanna, desta enamorado. Contudo, o ambiente particularmente agreste que se havia instalado no meio musical milanês, marcado pelo aceso conflito entre as duas mais influentes empresas de edição de partituras, respectivamente, controladas pelos principais teatros da capital lombarda - Teatro Alla Scala e Teatro dal Verme - assegurou que qualquer novo título seria alvo de um crivo particularmente intransigente na sua severidade por parte do público. O fiasco que aguardava Maria Tudor era, praticamente, inevitável. Instantaneamente, ecos da rejeição estenderam-se a outros palcos italianos, inviabilizando o granjeio de idêntico sucesso ao de algumas das óperas que a antecederam.

Actualmente, não obstante o plano secundário ocupado por Carlos Gomes no âmbito do romantismo operático italiano, diversos foram os intérpretes de monta que, quer em palco, quer por intermédio de registos fonográficos, não se eximiram a incluir algumas das mais significativas páginas do campinense no seu legado discográfico. Ao longo do século XX, nomes como Enrico Caruso ou, mais recentemente, Placido Domingo tem contribuído para assegurar um nível mínimo de difusão de esparsas parcelas da produção do compositor. No Brasil, em idêntico período temporal, a obra de Carlos Gomes tem tido uma presença frequente nas temporadas dos mais representativos centros líricos, contando, inequivocamente, com a interpretação de alguns dos mais reverenciados cantores líricos brasileiros, entre os quais, Niza de Castro Tank, Assis Pacheco, Paulo Fortes, Aracy Bellas Campos, Diva Pieranti, Lourival Braga, Ida Miccolis, Benito Maresca, Áurea Gomes ou Fernando Teixeira. Todavia, e contrariamente ao expectável, para além de intérpretes autóctones afamadas figuras da cena internacional tomaram parte em produções levadas à cena em solo brasileiro. A tal ponto que, uma das mais eminentes Divas italianas da primeira metade do século vinte - Gina Cigna – não se coibiu de incluir uma breve impressão da sua abordagem de algumas das óperas do compositor no livro The Last Prima Donnas da autoria de Lanfranco Rasponi: 

"My list of offbeat roles is very long. In Brazil I sang in Lo schiavo by Carlos Gomes, their greatest operatic composer, even in Campinas, his birthplace. As I was always most particular about my costumes – I had my own and would never accept engagements if there was any question about this – I made inquiries about the opera, and the answer was ‘Senhora, bracelets and necklaces, and that is all.’ I managed somehow to follow these instructions. In Rio de Janeiro and São Paulo I also appeared in Gomes’ Maria Tudor – not superior music by any means, a potpourri of sundry other composers; but this Brazilian composer had a great sense of the theatre, and there never was a dull moment.”

Conquanto, em termos puramente musicais, a globalidade da produção de Gomes possa ser adversamente cotejada com a obra alguns dos seus contemporâneos, designadamente, Giuseppe Verdi, o estilo composicional denota um continuado esforço na invenção de linhas melódicas, minimamente, sugestivas ainda que nem sempre revestidas de um carácter memorável. O emprego das massas orquestrais, longe de indiciar qualquer inovação, encontra-se incrustado na melhor tradição romântica italiana. Contudo, tal como observado no parágrafo precedente, sobressai a particular atenção depositada na necessidade de criação de um efectivo e constante momentum dramático, potencialmente, gerador de uma torrente de exaltação capaz de envolver o público.

Em audição, dois segmentos, francamente, ilustrativos da manifesta teatralidade que perpassa a ópera: a grande cena da monarca que conclui o segundo acto, imediatamente, após ser confrontada com a traição de Fabiani (Vendetta! Vendetta!) e a ária que principia o acto quarto (Piu intensamente io l’amo...Oh! Mie notti d’amor). Como forma de suplemento, incluímos o concertante do terceiro acto, no qual Fabiani é denunciado perante a Corte (Su te, sciagurato).

Em função da superior fidelidade sonora comparativamente aos demais registos que compõe a reduzida discografia da obra, o Memória da Ópera elegeu uma gravação efectuada ao vivo na Ópera Nacional de Sófia (Bulgária), a 6 de Novembro de 1998. Com direcção orquestral a cargo de Luís Fernando Malheiro, formavam o elenco: Eliane Coelho (Maria Tudor), Kostadin Andreev (Fabiano Fabiani), Franco Pomponi (Don Gil de Tarragona), Elena Chavdarova-Isa (Giovanna), Svetozar Ranguelov (Gilberto), Ivan Ivanov (Lord Montagu), Biser Georgiev (Lord Clinton), Stoil Georgiev (Um pagem).   


Vendetta! Vendetta!







 

Su te, sciagurato







 

Piu intensamente io l'amo...Oh! Mie notti d'amor







6 comentários:

Paulo disse...

Obrigado, Hugo.
De Carlos Gomes só conhecia "Il Guarany" e pareceu-me agora que haverá muitos mais pontos de interesse na sua obra.

FanaticoUm disse...

Caro Hugo,
Sou um incondicional admirador deste seu espaço. Agradeço-lhe mais este excelente texto. Não conhecia Carlos Gomes e, só através deste seu magnífico "post", tomei consciência da sua importância.
Muito obrigado e continue a encantar-nos com estes textos únicos!

blogger disse...

Hugo,
Conheço esta opera e esta mesma gravação que referes. A cena final do quarto acto é de uma intensidade avassaladora. E gosto muito da cena de confronto entre as duas sopranos.

Obrigado por este post. Gomes merece muito ser reconhecido. O proprio Verdi comentou "este começa onde eu acabei". E isso é digno de nota.

Gostava de poder ouvir a opera O escravo. Parece ter um tema prometedor.

Hugo Santos disse...

blogger,

congratulo-me pela manifestação de apreço face ao registo em questão. Desconheço se a possuis na íntegra, contudo, afianço-te que é uma obra, absolutamente, meritória de cuidada audição.

Nutro, igualmente, um enorme interesse pelas restantes óperas que integram este período composicional intermédio de Carlos Gomes: Il Guarany, Fosca e Salvator Rosa, esta derradeira, curiosamente, o primeiro título por intermédio do qual contactei com a produção do campinense.

A propósito do dueto que mencionas, agrada-me, sobremaneira, o momento em que a monarca lança a frase iniciada por "Maledizion" sobre uma portentosa massa orquestral, culminando no acto de decepagem de Fabiani e não Gilberto, inversamente, ao que mesma havia instruído.

Num prisma diverso, julgo deter, algures, uma gravação de Lo Schiavo, datada, salvo erro, do final da década de 50 e protagonizada por Ida Miccolis.

blogger disse...

Hugo,

Tambem conheço o Il GUarany, aquela gravação com o Domingo.
Relativamente à Maria Tudor, possuo a gravação na integra.

No youtube ontem, depois meti-me a procurar umas coisas, e encontrei uma gravação dos anos 70 em São Paulo, com uma interpretação magnifica do soprano.

Quanto ao Il Schiavo, descobri no youtube uma gravação dos anos 50. provavelmente essa mesma que mencionas. Gostava de lhe esticar a mao :)

Hugo Santos disse...

Também possuo essa versão de Maria Tudor com Mabel Veleris, Eduardo Álvares e um notável Fernando Teixeira, datada de 1978.