sexta-feira, 25 de novembro de 2011

La Traviata, Covent Garden 13 de Janeiro de 1960

 
Seiscentas e quarenta e oito. Uma cifra respeitante à quantidade de apresentações de um intérprete num determinado papel. Creio que esta breve introdução é passível de impor respeito. A ópera? La Traviata. O intérprete? Virginia Zeani.

Nascido em 1925, o soprano de origem romena cedo se estabeleceu em Itália, onde teve a oportunidade de estudar com o lendário tenor Aureliano Pertile. Estreia-se profissionalmente a 16 de Maio de 1948 no Teatro Duse de Bolonha com a Violetta de La Traviata, substituindo Margherita Carosio no derradeiro momento. A seu lado o tenor Arrigo Pola e o barítono Anselmo Colzani. Iniciava-se assim a associação de Zeani àquele que se tornaria o papel mais emblemático da sua carreira. Uma criação que correria o Mundo até Julho de 1973 no Teatro Gentile de Fabriano, igualmente em Itália, junto a Renato Cioni e Antonio Boyer. De facto, o papel de Violetta Valèry abriu-lhe as portas dos mais prestigiados teatros do circuito lírico internacional como a Ópera de Paris (1956, ao lado de Alain Vanzo), a Staatsoper de Viena (1957, com Gianni Raimondi e Rolando Panerai, sob a direcção de Karajan) ou, numa fase posterior, o MET de Nova Iorque, com Georges Prêtre a dirigir Bruno Prevedi e Robert Merrill (Novembro de 1966). A cortesã parisiense é, da mesma forma, uma das personagens (a outra sendo Mimi em La Bohème) com as quais Zeani se apresenta no Teatro Nacional de São Carlos, na ocasião, ladeada por Flaviano Labò e Carlo Tagliabue, sob a égide de Oliviero De Fabritiis, em récitas ocorridas a 10 e 14 de Abril de 1957.

Todavia, longe de concentrar a carreira neste papel específico, não obstante os ecos alcançados no cosmos operático, o reportório de Zeani abarcava uma amplitude de estilos considerável como comprovam as suas abordagens de toda uma galeria constituída por compositores como Puccini (Mimi em La Bohème, Cio-cio-san em Madama Butterfly, Manon Lescaut e Tosca), Rossini (Desdemona em Otello, Zelmira), Donizetti (Lucia di Lammermoor, Linda di Chamounix e Maria di Rohan), Verdi (Desdemona em Otello, Aida, Gilda em Rigoletto, Elena em I Vespri Siciliani, Alzira, Lina em Stiffelio), Giordano (Fedora), Cilèa (Adriana Lecouvreur) ou mesmo Wagner (Elsa em Lohengrin, Senta em Der fliegende Holländer [O Holandês Voador / O Navio Fantasma]). De entre as suas deambulações pelo reportório moderno sobressaem a assunção de Magda Sorel na ópera O Cônsul (The Consul) de Gian Carlo Menotti, sob a direcção de Thomas Schippers no Maio Musical Florentino (1972) e A Voz Humana (La Voix Humaine) de Francis Poulenc. Ao lado do marido, o destacado baixo Nicola Rossi-Lemeni, apresentou-se não só em algumas óperas periféricas do repertório verista, designadamente, Il Piccolo Marat de Pietro Mascagni como também em obras cimeiras do reportório barroco, neste caso, Giulio Cesare de Georg Friedrich Händel e ainda determinados títulos de compositores russos menos frequentados tais como O Demónio (Demon) de Anton Rubinstein. Em Janeiro de 1957, no Scala de Milão, faz parte de um elenco verdadeiramente notável encarregue da estreia mundial da ópera Les Dialogues des Carmelites de Francis Poulenc: Gianna Pederzini, Gigliola Frazzoni, Leyla Gencer, Fiorenza Cossotto na famosa encenação da autoria de Marguerita Wallman que percorreu as mais díspares latitudes do Globo, inclusive Lisboa. Curiosamente, seria com esta mesma obra que Virgina Zeani abandonaria os palcos, numa produção levada à cena entre Outubro e Novembro de 1982 na Ópera de São Francisco e na qual se incluíam intérpretes como Leontyne Price, Régine Crespin e Carol Vaness.

Londres, Janeiro de 1960. Em Covent Garden canta-se La Traviata com Joan Sutherland, a mais novel estrela do firmamento operático que, cerca de um ano antes, havia feito furor com a sua Lucia di Lammermoor nesse mesmo teatro. No dia precedente à récita que o Memória da Ópera ora procura evocar soam os alarmes. Sutherland não se encontra em condições de actuar. É necessário encontrar rapidamente alguém que a substitua. São efectuados vários telefonemas. Um desses directamente para Viena. A solução de recurso é encontrada. Virginia Zeani é colocada às pressas num avião de forma a poder chegar a Londres muito poucas horas antes do espectáculo principiar. Sem qualquer género de ensaio, ignorando os colegas, possivelmente até o maestro. Somente o conhecimento da personagem a seu favor. Finda a récita, aquela que ficaria para os Anais da Lírica como a estreia do soprano romeno em Covent Garden salda-se num rotundo sucesso, relativamente ao qual o entusiasmo do habitualmente reservado público britânico não terá sido, de todo, alheio.

Passível de configurar a categorização de soprano "lirico-spinto", Zeani exibe, tendo em mente instrumentos de envergadura análoga, uma plasticidade admirável que a habilita a uma sólida negociação das regiões grave e aguda e a uma execução escorreita das fioriture, feito de contornos quasi heróicos dado o andamento excessivamente lesto impresso pela direcção orquestral. O timbre suficientemente redondo, polvilhado com alguns laivos metálicos, denota um dramatismo latente na expressividade que permeia um fraseado, alternadamente, tenso e de basto lirismo, concorrendo, em última instância, para a composição de uma das mais notáveis criações preservadas num papel de elevadíssima dificuldade técnico-dramática. Uma empresa cujo êxito adquire proporções de monta, considerando não só o legado advindo da apropriação de tão emblemática personagem por parte de algumas das mais celebradas intérpretes da segunda metade do século vinte, designadamente, Maria Callas, como também observando o parco corpus discográfico (comercial, entenda-se) de Zeani, comparativamente, a toda uma fímbria de cantoras líricas (Moffo, Scotto, Caballé, Freni, Cotrubas) com as qual a sua leitura da condenada cortesã ombreia.

Da récita ocorrida a 13 de Janeiro de 1960, seleccionamos o final do primeiro acto (E' strano! e' strano!...Ah, fors'e' lui...Sempre libera), o segmento que conclui o acto intermédio a partir da intervenção de Violetta (Invitato a qui seguirmi) e a ária do último acto (Teneste la promessa...Addio, del passato).

Sob a direcção de Nello Santi, compunham o elenco: Virginia Zeani (Violetta Valèry), Marie Collier (Flora Bervoix), Leah Roberts (Annina), William McAlpine (Alfredo Germont), Jess Walters (Giorgio Germont), John Dobson (Gastone), Michael Langdon (Dr. Grenvil), Forbes Robinson (Barão Douphol), Ronald Lewis (Marquês d'Obigny).


E' strano! e' strano!...Ah, fors'e' lui...Sempre libera







 

Invitato a qui seguirmi







 

Teneste la promessa...Addio, del passato







4 comentários:

Paulo disse...

Escutando já o primeiro excerto. Grande cantora.

FanaticoUm disse...

Caro Hugo,
Obrigado por ter retomado este seu espaço único e essencial para todos nós, leigos, bebermos muitas gotas de conhecimento operático e não só.
Bem haja!

Raul disse...

Caro Hugo,
Infelizmente a saúde não tem andado muito famosa e, por isso, passou-me este excelente texto como o outro sobre Carlos Gomes. Claro que nada há acrescentar sobre esta tão grande cantora. Foi pena que esta famosa substituição não tivessa as mesmas consequências em termos de fama que teve para o nosso Tomaz Alcaide ao substituir o Gigli, se não estou em erro em Paris, no Duque de Mântua, ou para a Caballé ao substituir a Horne na Lucrezia Borgia no Carnagie Hall. Mesmo assim muitos e muitos melómanos conhecem este grande soprano. Eu apenas a tenho num disco de árias onde ela mostra toda a versatilidade que o Hugo refere. A Roménia pode orgulhar-se do seu século XX em termos de cantores líricos, pois entrou com a celebérrima Hariclea Darclée e fechou muito bem com a Angela Gheorghiu. O que aconteceu a esta no século XXI é outra história. Virginia Zeani, que num artigo qualquer li (já me esqueci onde), foi considerada uma das mulheres mais bonitas do mundo. Passe o exagero, mas é sempre um privilégio ver uma grande cantora ser igualmente uma bela mulher como o foram Liza della Casa, Anna Moffo ou Teresa Strich-Rendall.
Um abraço

Hugo Santos disse...

Caro Raul,
lastimo não o encontrar em condição ideal, desejando-lhe, desde já, uma célere e plena recuperação.

No que respeita às sucessivas gerações de interpretes, conquanto de estatura diversa, que a Roménia tem legado à Lírica, nunca será demais evocar nomes como Ileana Cotrubas, Viorica Cortez, Marina Krilovici, Ludovic Spiess, Nicolae Herlea, David Ohanesian, Lucian Marinescu, Dan Jordachescu, Elena Cernei, Vasile Moldoveanu, Mariana Nicolescu ou Corneliu Murgu.

Em réplica às suas derradeiras linhas, permita-me citar Keats:

"A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
A bower quiet for us, and a sleep
Full of sweet dreams, and health, and quiet breathing.(...)"

Um abraço.