
Seiscentas e quarenta e oito. Uma cifra respeitante à quantidade de apresentações de um intérprete num determinado papel. Creio que esta breve introdução é passível de impor respeito. A ópera? La Traviata. O intérprete? Virginia Zeani.
Nascido
em 1925, o soprano de origem romena cedo se estabeleceu em Itália, onde
teve a oportunidade de estudar com o lendário tenor Aureliano Pertile.
Estreia-se profissionalmente a 16 de Maio de 1948 no Teatro Duse de
Bolonha com a Violetta de La Traviata,
substituindo Margherita Carosio no derradeiro momento. A seu lado o
tenor Arrigo Pola e o barítono Anselmo Colzani. Iniciava-se assim a
associação de Zeani àquele que se tornaria o papel mais emblemático da
sua carreira. Uma criação que correria o Mundo até Julho de 1973 no
Teatro Gentile de Fabriano, igualmente em Itália, junto a Renato Cioni e
Antonio Boyer. De facto, o papel de Violetta Valèry abriu-lhe as portas
dos mais prestigiados teatros do circuito lírico internacional como a
Ópera de Paris (1956, ao lado de Alain Vanzo), a Staatsoper
de Viena (1957, com Gianni Raimondi e Rolando Panerai, sob a direcção
de Karajan) ou, numa fase posterior, o MET de Nova Iorque, com Georges
Prêtre a dirigir Bruno Prevedi e Robert Merrill (Novembro de 1966). A
cortesã parisiense é, da mesma forma, uma das personagens (a outra sendo Mimi em La Bohème) com as quais
Zeani se apresenta no Teatro Nacional de São Carlos, na ocasião, ladeada por
Flaviano Labò e Carlo Tagliabue, sob a égide de Oliviero De Fabritiis,
em récitas ocorridas a 10 e 14 de Abril de 1957.
Todavia,
longe de concentrar a carreira neste papel específico, não obstante os
ecos alcançados no cosmos operático, o reportório de Zeani abarcava uma amplitude de estilos
considerável como comprovam as suas abordagens de toda uma galeria constituída por compositores como Puccini (Mimi em La Bohème, Cio-cio-san em Madama Butterfly, Manon Lescaut e Tosca), Rossini (Desdemona em Otello, Zelmira), Donizetti (Lucia di Lammermoor, Linda di Chamounix e Maria di Rohan), Verdi (Desdemona em Otello, Aida, Gilda em Rigoletto, Elena em I Vespri Siciliani, Alzira, Lina em Stiffelio), Giordano (Fedora), Cilèa (Adriana Lecouvreur) ou mesmo Wagner (Elsa em Lohengrin, Senta em Der fliegende Holländer
[O Holandês Voador / O Navio Fantasma]). De entre as suas deambulações pelo reportório moderno sobressaem a assunção de Magda Sorel na ópera O Cônsul (The Consul) de Gian Carlo Menotti, sob a direcção de Thomas Schippers no Maio Musical Florentino (1972) e A Voz Humana (La Voix Humaine) de Francis Poulenc. Ao lado do marido, o destacado
baixo Nicola Rossi-Lemeni, apresentou-se não só em algumas óperas
periféricas do repertório verista, designadamente, Il Piccolo Marat de Pietro Mascagni como também em obras cimeiras do reportório barroco, neste caso, Giulio Cesare
de Georg Friedrich Händel e ainda determinados títulos de compositores russos menos frequentados tais como O Demónio (Demon) de Anton Rubinstein. Em Janeiro de 1957, no Scala de Milão, faz
parte de um elenco verdadeiramente notável encarregue da estreia mundial
da ópera Les Dialogues des Carmelites
de Francis Poulenc: Gianna Pederzini, Gigliola Frazzoni, Leyla Gencer,
Fiorenza Cossotto na famosa encenação da autoria de Marguerita Wallman
que percorreu as mais díspares latitudes do Globo, inclusive Lisboa.
Curiosamente, seria com esta mesma obra que Virgina Zeani abandonaria os
palcos, numa produção levada à cena entre Outubro e Novembro de 1982 na
Ópera de São Francisco e na qual se incluíam intérpretes como
Leontyne Price, Régine Crespin e Carol Vaness.
Londres, Janeiro de 1960. Em Covent Garden
canta-se La Traviata
com Joan Sutherland, a mais novel estrela do firmamento operático que, cerca
de um ano antes, havia feito furor com a sua Lucia di Lammermoor nesse mesmo
teatro. No dia precedente à récita que o Memória da Ópera ora
procura evocar soam os alarmes.
Sutherland não se encontra em condições de actuar. É necessário
encontrar
rapidamente alguém que a substitua. São efectuados vários telefonemas.
Um
desses directamente para Viena. A solução de recurso é encontrada.
Virginia
Zeani é colocada às pressas num avião de forma a poder chegar a Londres
muito
poucas horas antes do espectáculo principiar. Sem qualquer género de
ensaio,
ignorando os colegas, possivelmente até o maestro. Somente o
conhecimento da
personagem a seu favor. Finda a récita, aquela que ficaria para os Anais da Lírica como a estreia
do soprano romeno em Covent Garden salda-se num rotundo sucesso,
relativamente ao qual o entusiasmo do habitualmente reservado público
britânico não terá sido, de todo, alheio.
Passível
de configurar a categorização de soprano "lirico-spinto", Zeani exibe,
tendo em mente instrumentos de envergadura análoga, uma plasticidade
admirável que a habilita a uma sólida negociação das regiões grave e
aguda e a uma execução escorreita das fioriture, feito de contornos quasi heróicos dado o andamento excessivamente lesto impresso pela direcção orquestral. O timbre suficientemente redondo, polvilhado com alguns laivos
metálicos, denota um dramatismo latente na expressividade que permeia um
fraseado, alternadamente, tenso e de basto lirismo, concorrendo, em
última instância, para a composição de uma das mais notáveis criações
preservadas num papel de elevadíssima dificuldade técnico-dramática. Uma
empresa cujo êxito adquire proporções de monta, considerando não só
o legado advindo da apropriação de tão emblemática personagem por parte
de algumas das mais celebradas intérpretes da segunda metade do século
vinte, designadamente, Maria Callas, como também observando o parco
corpus discográfico (comercial, entenda-se) de Zeani, comparativamente, a toda uma fímbria de cantoras líricas (Moffo, Scotto,
Caballé, Freni, Cotrubas) com as qual a sua leitura da condenada cortesã
ombreia.
Da récita ocorrida a 13 de Janeiro de 1960, seleccionamos o final do primeiro acto (E' strano! e' strano!...Ah, fors'e' lui...Sempre libera), o segmento que conclui o acto intermédio a partir da intervenção de Violetta (Invitato a qui seguirmi) e a ária do último acto (Teneste la promessa...Addio, del passato).
Sob a direcção de Nello Santi, compunham o elenco: Virginia Zeani (Violetta Valèry), Marie Collier (Flora Bervoix), Leah Roberts (Annina), William McAlpine (Alfredo Germont), Jess Walters (Giorgio Germont), John Dobson (Gastone), Michael Langdon (Dr. Grenvil), Forbes Robinson (Barão Douphol), Ronald Lewis (Marquês d'Obigny).
Invitato a qui seguirmi
Teneste la promessa...Addio, del passato